Opinião : De boas intenções está o inferno cheio


Não é a primeira vez que um Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas (SECP) faz declarações sobre o ensino do Português no estrangeiro tendo como objetivo demonstrar boas intenções que na verdade apenas acabam por suscitar estranheza e fundadas dúvidas.

Em 2022 o então SECP Paulo Cafôfo declarou, com espantosa falta de credibilidade, que a Propina exigida aos alunos portugueses nas Comunidades a cargo do Instituto Camões iria terminar na Venezuela e na África do Sul, mas continuaria a ser paga nos restantes países.

Com essa declaração, o SECP revelou total desconhecimento da questão, dado serem exatamente esses os países onde a Propina não era exigida, sendo que o pagamento da dita nem seria possível na Venezuela, onde o ensino é de responsabilidade local e os professores não são pagos pela entidade portuguesa.

Em 2024, o SECP José Cesário, na sua segunda e curta colocação no cargo, preconizou o alargamento da rede de cursos aos países escandinavos onde, segundo o dito “também havia portugueses”.

Certamente que havia e há, mas ficou a questão de como, sendo esses países conhecidos pelo seu elevado custo de vida, iriam remunerar os professores, dado que aos reduzidos 300 docentes no sistema o MNE e Instituto Camões continuam a recusar aumentar os vencimentos, sem alteração desde 2009.

Fica-se com a impressão de que esses Exmos senhores gostam de fazer afirmações bem-soantes e algo megalómanas à Comunicação social sem se preocuparem com a possibilidade de serem questionados, caso cometam “gaffes” que evidenciam desconhecimento, como se passou há pouco no respeitante às declarações do atual SECP Emídio Sousa, durante a sua viagem aos Estados Unidos.

O atual SECP, já conhecido pelo deslize político de afirmar que os “verdadeiros portugueses no estrangeiro” eram os emigrantes residentes em França, declarou alto e bom som estar a fazer, ao que parece individualmente, a revisão do Regime Jurídico do Ensino do Português no Estrangeiro, um documento que, segundo o citado, seria também relevante para a portugalidade no estrangeiro.

Ora, na verdade, o citado Regime Jurídico, cuja revisão o nosso Sindicato reclama desde 2019, sem obter resposta, é um Decreto-Lei, portanto um documento de foro legal, com mais de 20 páginas e anexos, onde constam as regras que regem professores, coordenadores de ensino e leitores, assim como a atribuição de subsídios e vencimentos.

Portanto, quanto à questão da portugalidade, muito pouco, excetuando as modificações introduzidas pelo Instituto Camões, dando relevância ao ensino do Português como língua estrangeira sejam os alunos portugueses ou não. Até hoje não consta que o SECP queira reformular ou retirar essas determinações, as quais parece até desconhecer, dado que uma das suas repetidas afirmações, dirigindo-se aos portugueses no estrangeiro, é sobre a importância de falarem Português em casa com os filhos.

Um incentivo louvável sobre todos os aspetos, mas que contraria a realidade do Ensino do Português no Estrangeiro, onde desde 2012 existe unicamente ensino do Português como língua estrangeira, com manuais dessa vertente, um sistema direcionado para o muito apregoado Certificado, onde os conhecimentos dos alunos portugueses são avaliados na vertente Português Língua Estrangeira, sendo o dito inútil dentro da escolaridade obrigatória tanto no estrangeiro como em Portugal.

Assim, uma criança de 6 anos, em início de escolaridade, que tenha adquirido em casa uma boa fluência do Português, logo que comece a frequentar os cursos a cargo do citado Instituto será classificada em nível A1, portanto de iniciação, e colocada numa turma heterogénea com alunos de fluência boa, média e inexistente, todos a aprender Português como se fossem estrangeiros.

Será que o SECP já se deu conta dessa situação? Ou será que conhece apenas o ensino do Português em França, que foi sempre gratuito, mas onde a maioria dos cursos até ao 5º ano de escolaridade não são frequentados por portugueses?

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Voltando à questão de revisão do Regime Jurídico, quando o SECP apresenta a citada como já estando quase terminada, elaborada pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, comete um erro grave, pois que se trata, obrigatoriamente, de uma tarefa que envolve diálogo, discussão e negociação com os representantes sindicais que, até hoje, nunca foram contactados para enviar propostas ou apreciar aquelas da tutela.

O SECP evidencia também forte desconhecimento sobre a situação do ensino do Português nos Estados Unidos, um país que, como a Venezuela, Canadá, Austrália e Nova Zelândia não pertence à rede de cursos tutelados pelo Instituto Camões, sendo o ensino unicamente de responsabilidade local, em escolas e associações, com professores contratados e remunerados pelas mesmas, em resumo, países onde o Estado Português não tem qualquer ingerência sobre alunos, programas ou professores porque não contrata nem remunera estes últimos.

Assim, causa estranheza que o SECP se refira à grande quantidade de docentes do Português nos Estados Unidos, visto não ser correto apresentar números de professores aos quais Portugal não paga um único cêntimo, sendo assim ainda mais estranha a referência do SECP a queixas por parte desses professores sobre os salários recebidos, uma vez que não se encontram sobre jurisdição portuguesa.

Os únicos indivíduos, nos países supracitados, bem pagos e colocados pelo Instituto Camões são os chamados Coordenadores de Ensino, que claramente não podem coordenar o dito e cuja tarefa principal se resume a fazer publicidade junto de portugueses e lusodescendentes dos méritos do Certificado de Proficiência do Português Língua Estrangeira que é vendido aos interessados nesses países por 100 ou 80 euros.

Em resumo, mais um conjunto de afirmações por parte de um SECP que poderá mostrar um interesse louvável pela língua portuguesa no estrangeiro, mas que, evidenciando forte desconhecimento da realidade, parece ficar apenas pelas boas intenções.

E de boas intenções está o inferno cheio, como todos sabem.

O Instituto Camões, em 2011, quando assumiu a tutela do Ensino Português no Estrangeiro, nessa altura com mais de 600 professores e um número de alunos que rondava os 70 mil, também apresentou as melhores intenções, agora é que ia haver um ensino de qualidade, com ótimas condições para professores e alunos, com excelentes manuais e um importantíssimo certificado.

E o que temos hoje? Cerca de 300 professores a nível mundial, mal pagos e explorados, quase 20 mil alunos a menos, cursos à distância para crianças de 1° ciclo, porque dizem que os alunos são poucos, e com o ensino da História e Geografia de Portugal ausente porque o que é importante é aprender o Português como língua estrangeira para obter o tal Certificado.

Das boas intenções nada ficou, e se ainda não chegámos ao inferno, o caos e a exploração estão bem presentes no pouco que resta do sistema.

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Maria Teresa Nóbrega Duarte Soares

Secretária-Geral

Sindicado dos Professores nas Comunidades Lusíadas