Home Cultura Espetáculo de teatro “Lamento de Ĉiela” inspira-se em conceito do sociólogo francês Émile DurkheimLusojornal·5 Dezembro, 2019Cultura Uma igreja em construção, com um ambiente frio e escuro, serve de cenário ao espetáculo de teatro “Lamento de Ĉiela”, escrito e encenado por Guilherme Gomes, que tem estreia marcada para sexta-feira, em Viseu. Um espetáculo que se inspira em conceito do sociólogo francês Émile Durkheim. Na Igreja Madre Rita, aparentemente não há nada que leve a pensar que aquele seria um bom espaço para fazer um espetáculo. “É um lugar que está em obras, hostil, que faz eco. É um futuro espaço de culto, um templo, como sempre imaginei que seria o sítio onde Ĉiela morre”, contou à agência Lusa Guilherme Gomes, que foi galardoado pela Sociedade Portuguesa de Autores com o prémio Melhor Texto Português Representado na categoria Teatro, em 2018. Membro fundador do Teatro da Cidade (Lisboa), Guilherme Gomes decidiu criar, na sua terra natal, um espetáculo que aborda a temática da migração, partindo do conceito de anomia (ausência ou desintegração das normas sociais) usado pelo sociólogo francês Émile Durkheim. “Anomia nomeia o momento em que uma sociedade antiga cai e uma nova ainda não nasceu e há uma ausência de referenciais morais ou legais, as pessoas não sabem como se comportar. Mas não só o momento pode ser anómico, uma pessoa também pode ser anómica”, explicou, apontando os exemplos de Antígona, Jesus Cristo e Joana d’Arc. Ĉiela – nome em esperanto equivalente a Celeste em português – é uma migrante que acaba por morrer no leito de um rio seco, depois de ter sido abandonada pelos seus companheiros de viagem, porque partiu uma perna. No mesmo lugar está um Pierrot, que toca violoncelo. “Durante o espetáculo, acompanhamos a última hora, hora e meia, da vida de Ĉiela. Ela fala em esperanto, o que nos permite apresentar este espetáculo aqui, na Alemanha ou na França, sendo que ela será sempre estrangeira, porque não há o país do esperanto”, frisou. O esperanto é uma língua internacional que não pertence a nenhum país, criada com o objetivo de aproximar os povos. A Ĉiela (Carla Galvão) e o Pierrot (Bruna Maia de Moura) têm em comum, segundo Guilherme Gomes, o facto de serem “altamente discretas”. “Ĉiela há de morrer de discrição, porque ninguém a vê, ninguém a pode ajudar. O Pierrot é um poeta que expõe os seus sentimentos e transparece, verte-se para aquilo que cria, é como se perdesse a capacidade de dialogar com os seus contemporâneos”, explicou. O uso de muito plástico no cenário não é inocente, acrescentou Guilherme Gomes: “é uma tentativa de retrato do nosso próprio mundo, porque há muito plástico e eu creio que o espetador há de confundir a própria Ĉiela, que é um ser humano, com um pedaço de plástico e de lixo”. As cadeiras onde se vão sentar os espetadores foram colocadas longe do local onde decorrerá a ação. “Há esta relação altamente distante com a personagem Ĉiela, como nós com os migrantes que são reais. Só assistimos à voz da Ĉiela que está aqui. Ela pede-nos ajuda e nós não a ajudamos”, referiu. Segundo o encenador, “talvez os segredos que Ĉiela revela sejam partilhados por pessoas que estejam na plateia”. “Se isso acontecer, o teatro conseguiu, o teatro salvou-nos, se não de outra coisa, pelo menos da solidão”, acrescentou. Integrado no projeto Creta, que foi financiado em 50 mil euros pelo programa municipal Viseu Cultura, o espetáculo “Lamento de Ĉiela” estreia-se na sexta-feira e será também apresentado no sábado, no mesmo local. Este é o primeiro espetáculo de uma trilogia que o Teatro da Cidade pretende desenvolver sobre o conceito de anomia.