Livro: “Soi-même comme un sujet impérial”, de João Manuel Neves – Moçambique, as cicatrizes do passado colonial português

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Numa época em que a elite sociopolítica (e económica) do chamado “Ocidente” sente dificuldades em compreender as razões pelas quais o “Sul Global” não segue as diretivas geopolíticas dos Estados Unidos e seus aliados, mormente no que diz respeito ao apoio cego e total a um dos lados nos extraordinariamente complexos conflitos russo-ucraniano e israelo-palestiniano, foi publicado, este ano, em Portugal e, agora, em França a mais recente obra do investigador João Manuel Neves, investigador no Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa e investigador associado no CREPAL da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.

“Soi-même comme un sujet impérial – Littérature coloniale des années 1920: le cas du Mozambique”, publicado pela L’Harmattan é uma daquelas obras que, indo ao fundo da questão, neste caso a literatura colonial dos anos 1920, consegue explicar a substância desta profunda divergência, que, indubitavelmente, marcará a História do século XXI, entre o “Ocidente” (quase sempre os países outrora colonizadores) e o “Sul Global” (quase sempre os países outrora colonizados).

Sendo a literatura um dos mais fiéis retratos da psique coletiva da sua época, João Manuel Neves explica como “a visão colonial do mundo corresponde às ideias dominantes durante o tempo histórico colonial”, acrescentando que essas ideias “são a expressão de três níveis de relações hierárquicas no seio da formação social colonial. Por um lado, relações de hegemonia da burguesia colonial sobre as outras classes que formam o estrato social dos colonos. Por outro, uma dupla cadeia de relações de dominação coletiva deste estrato compósito. É de natureza totalitária e exerce-se sobre a massa dos colonizados, mas assume critérios pseudo-biológicos ou culturais”.

Como se vê, a incompreensão das elites conservadoras que governam hoje a maioria das ex-potências colonizadoras explica-se pelo simples facto de essas mesmas elites não conseguirem abranger na totalidade (talvez por falta de empatia) o modo como a “natureza totalitária” do colonialismo imperial deixou cicatrizes, figurada e literariamente, na pele dos povos colonizados.

As elites que governam as ex-potências coloniais, nas quais se inclui Portugal, tendem a empurrar os horrores do colonialismo em África ou na Ásia, para um passado profundo que já deveria ter sido esquecido pelas vítimas (todavia nunca ousam dizer que os judeus, vítimas do genocídio industrializado que foi o Holocausto, deveriam esquecer esses horrores dos anos 1940 e seguir em frente…) de modo a facilitar a relação entre antigos colonizadores e antigos colonizados.

Essas elites ignoram, porventura, que as cicatrizes deixadas pelo colonialismo passaram de geração em geração e explicam hoje a divergência entre o “Ocidente” e o “sul Global”. A verdade, é que muitas dessas feridas infligidas pela humilhação racial tão patente nas obras literárias estudadas por João Manuel Neves, não cicatrizaram e estão ainda abertas, facto que influencia de modo determinante a construção das identidades nacionais dos povos colonizados.

“O Si-Mesmo Como Sujeito Imperial. Literatura colonial dos anos 1920: O caso de Moçambique”, põe a nu, através da análise das obras literárias do período colonial, a perpetuação de uma narrativa literária que se alicerça tanto na reprodução ad nauseam da inferioridade biológica e cultural dos povos colonizados como da superioridade dos colonizadores, não fosse a opressão colonial considerada por estes últimos como uma “divina missão civilizadora de territórios e povos selvagens”.

Esta obra de João Manuel Neves é um exercício de empatia que, num mundo cada vez mais dividido e abalroado por retóricas fascizantes que tentam menosprezar aquele que é diferente, o Outro, seja na cultura, na religião ou na cor da pele (ver o os discursos anti-imigração ou de ataque aos refugiados reproduzidos por muitos políticos e media), utiliza a História da Literatura para demonstrar que muitas das visões racistas dos anos 1920 estão, 100 anos depois, de regresso.

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LusoJornal