Opinião: JO 2024: Não fechem os parêntesis!


O mês de setembro, em França, assinala a “rentrée”, o período pós-férias de transição do lazer à produtividade. O espírito desta fase é caracterizado por uma energia renovada e um sentimento de novos começos, à medida que as pessoas abraçam a rotina e traçam novas metas pessoais e profissionais. Sempre adorei o entusiasmo contagiante e o sentido de propósito coletivo da “rentrée”, que incute uma sensação de comunidade equiparável à das épocas festivas do ano.

Sucede que, este ano, a “rentrée” segue-se ao período dos Jogos Olímpicos de Paris. Etapa essa marcada por uma paz e serenidade invulgares, mesmo nas zonas mais sensíveis da região de Paris e pese embora os 12 milhões de visitantes que a capital acolheu.

Num ciclo de várias semanas já apelidado por vários como milagroso, as mulheres de Saint-Denis puderam vestir uma mini-saia sem medo de represálias, os adolescentes de Saint Ouen e de Porte de la Chapelle aproveitaram para circular livremente até altas horas da noite, os habitantes dos subúrbios não sofreram assédios a deambular pela Gare du Nord ou a bordo do RER e todos aqueles que, receosos, viam a ameaça terrorista pairar sobre Paris, puderam esquecer-se momentaneamente que a França é palco de 44% dos atentados de terrorismo islâmico perpetrados em solo europeu. Paris mostrou-se realmente diferente do resto do ano, permitindo até que os mais céticos se reconciliassem com a capital.

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Debrucemo-nos sobre as razões para tal.

Em primeiro lugar, a mobilização extraordinária de cerca de 35 mil polícias e militares (incentivados por um prémio financeiro podendo alcançar os 1.900 euros) – dos quais quase 2 mil polícias estrangeiros “alugados”, oriundos de 43 países – e a contratação de 25 mil seguranças privados. De carro, de mota, de bicicleta, a cavalo ou a pé, mesmo à paisana, foram avistados por todo o lado, dos recintos desportivos aos locais turísticos, passando pelas zonas residenciais da cidade, numa demonstração do poder dissuasor do policiamento visível e de proximidade.

Mas a presença policial reforçada, por si só, não explica tudo. Os agentes foram dotados de meios excecionais para realizar o seu trabalho eficazmente, com o armamento da polícia municipal e uma derrogação ao enquadramento processual penal, instituída pelo Ministério da Justiça, que permitiu um recurso acrescido ao processo sumário (“comparution immédiate”), de modo a facilitar detenções.

Curiosamente, apesar do forte recuo da criminalidade, muitas autarquias aproveitaram temporariamente as medidas excecionais para aumentar a eficácia no combate aos pequenos delitos. Por exemplo, na região mais perigosa de França, Seine-Saint-Denis, onde tiveram lugar metade das provas olímpicas, o número de detenções dobrou nos meses de julho e agosto.

Cumpre referir também o reforço dos meios de vigilância em zonas críticas, como nos recintos desportivos ou meios de transporte públicos. Além do destacamento de drones de vigilância de longo alcance e das medidas reforçadas no domínio da cibersegurança, foi aprovado pela Assembleia Nacional um inédito diploma legislativo, com os JO em mente, que trouxe um regime experimental de videovigilância com recurso à inteligência artificial.

Excluindo a “linha vermelha” que é o reconhecimento facial, o algoritmo é capaz de identificar prontamente situações suspeitas como súbitos incêndios, grandes aglomerações, objetos suspeitos abandonados ou a presença de armas, gerando alertas imediatos que permitem às autoridades reagir à possível ameaça em tempo real.

Não ignoremos, igualmente, o trabalho de diligências prévias conduzido pelos serviços de inteligência. Foram realizadas um milhão de verificações de antecedentes em funcionários, voluntários e participantes nas provas, o que levou à identificação atempada de aproximadamente 5 mil suspeitos, incluindo islamistas radicais e pessoas suspeitas de interferência estrangeira.

Soube-se que os serviços de contraterrorismo, inclusive, impediram três projetos de atentado, incluindo por parte de um Checheno de 18 anos que planeava um ataque suicida no estádio Geoffroy-Guichard, em Saint-Étienne, durante um jogo de futebol.

Por fim, há que destacar o desmantelamento de centenas de acampamentos de migrantes ilegais ou de membros da comunidade cigana e as operações de realojamento de squatters, pessoas em situação de sem-abrigo ou toxicodependência e de trabalhadores do sexo, em centros de acolhimento espalhados pelo território francês. Esta é a demonstração de que, ao reduzir a presença de situações de vulnerabilidade ou dependência na rua, a criminalidade tende a diminuir.

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Darmanin e Dupont-Moretti são dois dos Ministros mais criticáveis dos Governos de Macron, pela sua responsabilidade no que concerne à submersão migratória, ao laxismo judicial ou à impunidade penal reinantes em França, como comprovam os números recorde de entradas legais e ilegais, de penas de prisão não cumpridas ou de decisões de expulsão do território francês (“OQTF”) não executadas.

Mas desta vez, porque o verdadeiro reconhecimento inspira a continuar, há que tirar o chapéu aos Ministros cessantes. Esta é uma oportunidade de ouro para o poder executivo (e local) demonstrar que consegue defender os franceses numa base que vai além do meramente excecional.
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João Cruz Ferreira

Funcionário da UE destacado em Paris

Autor de “A França a olho nu”

LusoJornal