Opinião: O silêncio dos inocentes


Há silêncios que matam mais devagar do que um punho, mas não com menor crueldade. Em Portugal, as feridas abertas pela falta de voz continuam a crescer, ainda que muitos prefiram fingir que não veem. Segundo os últimos dados da APAV, em 2024 foram realizados 105.747 atendimentos relativos a 31.242 crimes ou outras formas de violência, um aumento de cerca de 13,4% face a 2023.

No universo das pessoas idosas, o abandono é um grito que quase nunca ecoa. Entre 2021 e 2024, a APAV apoiou 6.523 pessoas idosas vítimas de crime e violência, uma média de 136 por mês, ou cerca de cinco por dia. Os casos variam: negligência, abuso financeiro, maus-tratos físicos e psicológicos, formas muitas vezes invisíveis até para quem deveria cuidar.

O perfil dessas vítimas é maioritariamente feminino (cerca de 76%) e na faixa etária dos 65 aos 74 anos, os agressores muitas vezes são filhos ou filhas.

Quanto às crianças e jovens, o silêncio também pesa. Em 2023, a APAV registou 1.760 crimes sexuais contra crianças e jovens, o número mais alto até agora. A violência doméstica contra este grupo subiu também: de 2.914 casos em 2022 para 3.518 em 2023, um aumento de cerca de 20,7%.

Nas mulheres, que tantas vezes carregam mais do que o corpo ferido, os números são esmagadores. Em 2024, a APAV apoiou 16.630 pessoas vítimas de violência, a maioria mulheres. A violência doméstica continua a liderar as estatísticas, cerca de 76% dos crimes reportados pertencem a essa categoria.

E quanto às pessoas com deficiência?

É aí que o nevoeiro se torna quase completo. As estatísticas oficiais ainda não oferecem números claros da APAV sobre vítimas com deficiência, quantas denunciam, de que tipo de violência são alvo, com que frequência. Isso não surpreende: essa invisibilidade é parte do problema. O estigma, a dependência física ou económica, o medo, conspiram para manter o silêncio selado.

É aqui que a hipocrisia social se revela de forma mais lapidar: a família, erguida como sacrário de virtudes, transforma-se num lugar de clausura, onde se vigia a aparência com mais zelo do que a dignidade humana. A criança, o idoso, a pessoa com deficiência, todos aqueles cuja voz é naturalmente mais frágil tornam-se alvos fáceis, porque falar é-lhes difícil, e porque a sociedade, em vez de escutar, prefere o conforto do fingimento.

Simone de Beauvoir escreveu que “a opressão precisa do silêncio das vítimas tanto quanto da violência dos opressores”.

E esse silêncio é muitas vezes imposto pela chantagem moral: “Não digas nada, não exponhas a família, não passes vergonha”.

O idoso que sofre maus-tratos teme perder o pouco afeto que ainda lhe resta. A pessoa com deficiência depende de quem a agride para comer, para se deslocar, para existir.

A criança aprende que, ao falar, pode destruir a honra dos pais. E assim o ciclo repete, sob a capa da ordem social.

Recordo que, quando escrevi sobre a violência em pequenas aldeias, cobriram-me de insultos claros ou velados. Não porque tivesse exagerado, mas porque tive a ousadia de nomear. Escreveram que nunca tinham visto nada disso, que tinham crescido em ambientes idílicos, cheios de amor. Como se a felicidade de uns apagasse a miséria de outros. Como se o privilégio pessoal fosse argumento contra a dor alheia. Mas os números da APAV não mentem: ano após ano há violência doméstica, maus-tratos prateados de negligência, abusos camuflados pelas paredes, vulnerabilidades exploradas em silêncio.

Então descubro, nas páginas dos relatórios e nas vozes que ousaram atravessar o muro do sigilo, que muitos relatos não são “casos especiais”, mas ecos de uma estrutura.

Num relatório do Gabinete de Apoio à Vítima, encontrei este fragmento: “Esse sufocar de eu quase não conseguia respirar dentro de mim própria pelo controlo gigante (…)”

Quem o disse? Uma mulher vítima, numa investigação apoiada pela APAV, falando do terror cotidiano que transformou sua casa em prisão emocional. Essa frase aparece numa dissertação analisando violência doméstica, em que a entrevistada relata que o controle da vida quotidiana se tornou tão intenso que ela chegou a “quase não conseguir respirar” dentro de si mesma.

Outro testemunho, recolhido pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica, relatou abusos sofridos décadas atrás: muitos só tiveram coragem de falar 10 anos depois dos acontecimentos. Em mais de 512 testemunhos validados, 77% das vítimas nunca tinham apresentado queixa formal, e apenas 4% recorreram ao sistema judicial.

Há ainda quem diga, sem medos: que saiu de casa levada pela angústia, que dormia com o telefone no braço, que escolhia rotas diferentes para o supermercado para evitar o agressor, que viveu tantos apertos emocionais que deixou de reconhecer o próprio rosto no espelho. Essas vozes atravessam o silêncio e denunciam que o mal, muitas vezes, não grita, ressoa, sibilante e persistente, nos cantos mais íntimos.

É esta violência subtil: negar o testemunho, desautorizar a vítima, etiquetar como exceção aquilo que é estrutural. E, no entanto, as estatísticas estão lá, frias como bisturis, a cortar a carne da ilusão.

Nas redes sociais, a lógica repete-se: quem ousa escrever é insultado, ridicularizado, acusado de exagero. O idoso que denuncia maus-tratos é tratado como senil. A pessoa com deficiência que ousa expor abusos é silenciada com paternalismo. A criança, quando finalmente fala, ouve de volta: “Isso só aconteceu na tua casa. Não faças disso um problema social”.

Mas é problema social. Porque uma sociedade mede-se pelo modo como trata os seus mais frágeis. E a nossa, tantas vezes, prefere decorar o átrio da casa em vez de limpar os escombros do quarto interior.

Nietzsche lembrava que “o que é feito por amor acontece sempre para além do bem e do mal”. Aqui, ao contrário, o que é feito em nome do amor familiar serve demasiadas vezes para justificar o mal. O amor como máscara, o silêncio como pacto, a ordem como desculpa.

Não se constrói futuro a varrer para debaixo do tapete. Não se ergue justiça onde há vozes abafadas. Camus falava da rebeldia como única saída digna para um mundo de injustiças. Talvez seja isso que nos falta, uma rebeldia coletiva contra o pacto de silêncio.

Dar palavra aos que não podem falar, crianças, idosos, pessoas com deficiência, é mais do que um dever, é um ato de higiene moral. É romper com a tradição de proteger o algoz em detrimento da vítima. Sem a coragem de analisar a situação, não há futuro limpo, nem memória justa, nem humanidade possível.

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Cristina Branco