A desmistificação das ideias feitas sobre os “Descobrimentos”

Num momento em que a sociedade portuguesa vai debatendo “ideologicamente”, por entre relativismos e absolutismos históricos e historiográficos, os “Descobrimentos” – termo ambíguo por natureza -, uns não esquecendo os crimes (escravatura, colonialismo, imposição cultural e pilhagem dos recursos alheios) e outros salientando as glórias e os avanços (descobertas geográficas, antropológicas e astronómicas), as Éditions Chandeigne lançam uma nova edição de “Idées reçues sur les Grandes Découverts” da autoria de Jean-Paul Duviols e Xavier de Castro (pseudónimo de Michel Chandeigne).

Um pequeno livro do tamanho de uma mão e longo de 250 páginas, ricamente ilustrado, que se divide em quatro partes: duas dedicadas a Portugal (da autoria de Xavier de Castro) e duas consagradas a Espanha (da autoria de Jean- Paul Duviols). Cada um dos seus quase 40 capítulos respondem a muitas das questões, dissipam quase todas as dúvidas e desconstroem alguns dos mitos mais irrealistas que a historiografia ao longo de 500 anos foi construindo sobre as causas, as formas ou o impacto das grandes navegações ibéricas. Mitos e narrativas quase sempre ao serviço dos interesses de Portugal e de Espanha, potências imperialistas e colonialistas que usaram a História para fins nacionalistas. Como exemplos recentes desse “uso” temos as manipulações grosseiras que os regimes salazarista e franquista fizeram da História para justificar o terror colonial imposto aos povos submetidos ao seu Poder.

Logo na introdução, os autores fazem questão de referir que o próprio termo “Descobrimentos” – que por preguiça e bolorenta tradição se continua a usar nas escolas – é um puro anacronismo. “Hoje”, referem os autores, “a palavra Descobertas quase não é usado pelos historiadores, pois ela implica evidentemente uma visão eurocêntrica doravante obsoleta da História mundial. Para o grande público, o termo permanece contudo familiar”.

É partindo desta premissa, contemporânea e justíssima, que Castro e Duviols vão então desconstruindo, um a um, os mitos que ainda hoje prevalecem e que contaminam o nosso entendimento sobre as grandes aventuras geográficas que portugueses, primeiro, e espanhóis, mais tarde, empreenderam durante os séculos XV e XVI.

É verdade que na Idade Média as pessoas acreditavam que a Terra era plana? Será que os Portugueses já conheciam a existência do Brasil antes de 1500? Terá sido a sífilis trazida pelos espanhóis da América para a Europa? Terão sido as descobertas portuguesas menos violentas do que as conquistas espanholas, dando assim razão às teses lusotropicalistas de Freyre? Foi Afonso de Albuquerque menos sanguinário no Índico do que Hernán Cortés no México? É verdade que as especiarias valiam literalmente o seu peso em ouro?

Perguntas antigas que encontram respostas modernas, sempre alicerçadas numa abordagem independente e imparcial da História. Quer no âmbito científico e cosmológico, por exemplo ao nível das técnicas de navegação, quer sobre o “fim do mundo” que, para os povos ameríndios e africanos, representou a chegada dos europeus às suas terras. Só na América, diz Bartolomé de las Casas, em 1579, um contemporâneo da conquista espanhola portanto, que “Em quarenta anos, por causa da tirania espanhola, morreram mais de doze milhões de homens, mulheres e crianças.” Não esqueçamos igualmente que as vítimas africanas do sanguinário tráfico negreiro português também se contam em milhões.

Assim, longe dos hábitos historiográficos do século XIX e XX – que apresentavam os colonizadores brancos como benfeitores que levaram as suas sublimes culturas e a mais justa das religiões, o cristianismo, aos bárbaros que viviam em terras “desconhecidas” -, Castro e Duviols apresentam uma obra cuja utilidade e pertinência é hoje maior do que nunca, visto que, nestes dias de rapidíssimas mutações sociais e culturais provocados pelo avanço imparável das tecnologias, ela permite, como se refere na contracapa, “um exercício salutar de respeito dos factos, nestes tempos de fake news generalizadas e de pós-verdade invasiva”. Um livro de leitura obrigatória.

 

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LusoJornal