“Dei o ‘salto’ duas vezes. Fui à Inspeção a Portugal e voltei para França, sempre a ‘salto’”

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– Foi em setembro de 1967 que eu e mais uns amigos, decidimos ir até França. Pelas nossas terras falava-se muito da guerra que andava pelas colónias. Eu tinha 18 anos nessa altura, mas o que se ouvia era que aos 20 anos todos eram chamados para prestar o serviço militar obrigatório e quase nenhum escapava na Inspeção, eram todos apurados “para todo o serviço”. Coxos, cegos e mesmo malucos, ia tudo na incorporação. Os que se safavam ainda eram os filhos únicos, que ficavam para apoio da família, diziam eles. Mesmo com umas cunhas, não escapavas.

Foi assim que Mário Gonçalves começou por contar a sua “epopeia”, a história daqueles anos que transformaram a sua vida e a de centenas de outros jovens portugueses nos finais dos anos 60 e início dos anos 70.

Carçolas era uma pequena aldeia situada nas margens do rio Mondego, onde os dias corriam tranquilos e com grande monotonia. As ocupações giravam à volta da agricultura e da indústria florestal. A juventude com idade de trabalhar, dava braços e tempo, participando em trabalhos para a família ou como jornaleiros.

Mário era um deles. Com os amigos da mesma idade, por vezes falavam de partir para o estrangeiro, ganhar a vida, tendo mais rendimentos. As notícias que iam chegando com aqueles que regressavam de “vacances” eram que se ganhava lá muito bem, mais do dobro do que se ganhava na terra. E mais tarde, também se falava de fugir à tropa e escaparem à mobilização para Angola, Moçambique e Guiné.

– Já se ouviu dizer que alguns andaram lá cerca de um ano e meio, mais a recruta em Portugal, fazendo um total de dois anos ou mais. Não pode ser, é muito tempo e sem contar o risco de ficares por lá estendido e depois vens para a terra na “caixinha de pinho”, dizia Artur, um amigo de Mário.

– Pois é rapazes, venha lá quem vier, eu, se Deus me ajudar, no fim do verão vou-me embora. Tenho um primo da parte da minha mãe que já lá está há um ano, vou escrever-lhe para ver se me arranja lá trabalho.

– Fazes bem, diz-lhe que arranje lá trabalho para dois, acrescentou Francisco.

– Já agora, para não ficar aqui sozinho, que arranje para quatro. Assim, aos domingos poderemos jogar à sueca, seremos quatro ao todo, acrescentou ainda o João soltando uma boa gargalhada.

– Está bem rapazes, hoje mesmo vou escrever a carta. Prometido. Vou pedir à minha irmã que me ajude e tenho que ir pedir a direção à minha tia.

Contentes com estas expectativas de viagem e de futuros melhores, os rapazes até ganharam mais força e motivação para o trabalho de “rolaria” que faziam lá na serra.

 

Quando se encontraram novamente, foi para combinarem como fazer a viagem e começarem os preparativos.

– Oh Mário, disse o João. Então o teu primo já te escreveu? A tua irmã disse-me que sim.

O João namoriscava a irmã de Mário. E foi daí que teve a notícia.

– Sim, e tenho boas notícias. O patrão dele dá-nos trabalho a todos se formos já, dentro de um mês.

– Boa malha. Estamos com sorte. Vamos lá a isto. Só já temos três semanas para estarmos lá.

– Vamos ver se podemos pegar ao trabalho em outubro. Eu já mandei recado a um taxista, que é ali perto de Oliveira do Hospital, e que também é passador. Logo vou ligar-lhe para que venha ter connosco. Hoje é sexta-feira, talvez domingo ele possa aparecer por aqui.

Como tinha previsto Mário, no domingo, pelo início da tarde, tinham encontro marcado na fonte dos olivais, junto à famosa estrada de Penacova. À hora marcada apareceu o taxista com um amigo, entraram num caminho agrícola, junto de uma “rodeira” para estarem mais ao abrigo dos olhares de quem por ali passasse.

– Então qual é o destino meus meninos? perguntou o Sr Amadeu.

– Vamos todos para o mesmo sítio, a norte de Paris, Aubervilliers, sabe onde é?

– Claro que sei. Já lá passei várias vezes. Olha que ainda são uns pares de quilómetros. Mas é para um prédio ou uma casa?

– É para casa do meu primo. Nos primeiros tempos vamos lá ficar. Mas se compreendi bem, ele mora no estaleiro, nuns contentores do patrão. Mas ele disse-me por carta que já tínhamos alojamento previsto e que depois se veria. Você leva-nos e está tudo bem assim.

– Muito bem, então já vos digo que para os quatro, a passagem, a viagem e algum comer, o preço será aquele que tenho levado há mais de seis meses. Quero ao todo cem contos. Está bem assim?

– Porra, você julga que somos ricos ou quê? Isso é muito. É quase o dinheiro de um ano de trabalho nos pinheiros. Vinte e cinco contos cada um… fogo! Disse Artur, admirado com o preço.

– Não, isso é muito Sr. Amadeu, veja lá isso! Olhe que eu tenho que ir pedir algum, porque não tenho essa soma, disse por seu lado João.

– Bom vocês parecem ser bons rapazes. Se quereis, fazemos assim, dais-me agora quinze contos cada um, e depois, para o ano que vem, dais-me os dez que vão faltar para os vinte cinco contos. Negócio fechado?

Os quatro olharam-se com o sentimento de serem, mesmo assim, um pouco explorados, mas a vontade de partir era tão grande, que decidiram fechar o negócio, aceitando os preços da viagem como o Sr. Amadeu lhes propunha.

Um aperto de mão selou o acordo destes cinco homens que queriam mudar o rumo da vida.

– Então vamos beber um copo. Bebemos aqui porque o meu vizinho trouxe um garrafão e copos. Vamos brindar ao sucesso da vossa e da minha viagem até França. O dia da partida pode ser já quarta-feira? Perguntou o Sr. Amadeu taxista.

– Por mim, penso que sim. E vós, o que dizeis? Perguntou Mário.

– Não deve haver problemas. Ficamos combinados. Acordaram os três outros.

– Então quarta-feira, lá para as três horas da madrugada, estou na entrada da vossa terra.

 

Um por um, falaram ao empreiteiro do corte de pinheiros lá na serra, onde eles trabalhavam. Dizendo que no próximo fim de semana queriam ir até Lisboa, e que não voltariam ao trabalho tão depressa, pois iam tentar encontrar trabalho lá na capital. Tudo isto estava longe da verdade, mas era para não se levantarem suspeitas, e não virem a ser denunciados às autoridades da GNR e outras… pois com as idades deles e a tropa à porta, dava logo para se pensar em muita coisa.

Todos os preparos foram feitos em segredo. Preparou-se o dinheiro para a viagem, as roupas de inverno e as malas estavam recheadas de tudo… e mais alguma coisa.

Como combinado, à hora certa, na quarta-feira, partiram em direção da Espanha e depois da França tão ansiada.

Três horas depois passavam a fronteira numa manhã de sol, mas ninguém da Alfândega ou da Polícia se apresentou ao controle. Em Espanha foi a mesma coisa. “É fácil de adivinhar que o Sr. Amadeu tinha isto tudo comprado e controlado” pensaram os quatro amigos, conterrâneos e da mesma idade. Não devia ser sempre assim que as coisas se passavam.

– Então rapazes, já cá estamos. Agora daqui para a frente, é dar ao pedal. Em França é que teremos que mostrar o bilhete de identidade. Mas não há crise, será sempre a andar.

– Se assim for… pensou Mário, serão bem empregues os vinte cinco contos que vamos ter de pagar pela viagem.

Depois de umas merendas, e de carregar carburante no velho Mercedes de seis lugares, as terras dos Pirinéus e as suas montanhas começaram a aparecer no horizonte, banhadas pelo sol poente, que se escondia em terras de Portugal.

Aqui, a saudade entrou nas mentes dos quatro jovens. Quando é que eles viriam de novo à aldeia e às águas do Mondego? As palavras eram poucas, pois cada um estava longe dali, pensando na família e na namorada.

A iluminação pública de S. Sebastian e de Hendaye, confundiam-se, a noite acabava de tomar posse do seu espaço, aumentando ainda mais a sensação de solidão e de abandono.

– Rapazes vocês parece que estão tristes caramba. Vocês estão a chegar à terra do dinheiro, porra! Eu vou dormir um pouco quando chegarmos a França, mas amanhã de manhã estaremos já em Paris… terra de lindas mulheres, caramba! Mas atenção algumas já têm dono, disse o Sr. Amadeu sorrindo.

 

Na fronteira, um táxi português por estes anos era uma novidade. Mas a certas horas até passava despercebido, sobretudo ao cair da noite. Ao se apresentarem ao posto de controle, o Sr. Amadeu estacionou o carro e juntou os quatro Bilhetes de identidade ao seu e entrou na grande porta do edifício da “Police des Frontireres – Douane”.

Os quatro amigos estavam impressionados, pois por vezes as histórias de prisões feitas na fronteira, a clandestinos, eram contadas com frequência e em outros cenários, por vezes dramáticos.

Passou-se perto de uma hora e o Sr. Amadeu não aparecia. Eles estavam preocupados, pois não sabiam falar francês e agora sem documentos de identificação, as coisas poderiam tornar-se difíceis.

O Sr. Amadeu apareceu no cima das escadas, veio até ao carro e disse baixinho:

– Caraças rapazes. Há aqui um Bilhete de identidade caducado. Estamos metidos numa alhada. Raios me partam. Eu havia de ter verificado antes. Então o Sr. Artur não sabia que o seu documento estava caducado há três meses? Caraças, mas que pouca sorte a minha.

O medo deu asas à imaginação destes homens. Já se viam presos e de novo a caminho de Portugal. O Sr. Amadeu recuperou uma carteira que tinha no porta luvas e saiu de novo em direção ao posto de controle. Minutos depois voltou.

Não houve um só polícia francês que tivesse saído para ver os quatro amigos.

– Bom, parece que desta já nos safamos. Mas vai-lhes custar mais umas notitas de conto, meus meninos. Arranjem-se depois com o Sr. Artur, disse rindo.

– Quer dizer que você teve que pagar mais alguma coisa para passarmos a fronteira?

– Claro que foi. E os f* da p* sabem que a gente o tem e depois nem têm piedade de nós. Bom, já está feita a borrada, depois falaremos.

 

Numas bombas de gasolina, comeram a merenda que ainda traziam nos sacos. E o Sr. Amadeu preparou-se para dormir uma hora ou duas.

– Vocês deixem-me dormir, não me acordem. A ver se descanso um pouco. Se um de vós tivesse carta, arriscávamos um pouco… mas assim não.

Perto das oito da manhã, já com o sol alto, e depois das duas horas de sono do Sr. Amadeu, que acompanharam dentro e fora do carro, à fresca desta noite de fim de verão, apareceram os subúrbios de Paris e logo depois Aubervilliers.

Como combinado, o primo de Mário apareceu e acabou por os guiar até ao estaleiro onde vivia e que seria por agora a habitação dos quatro amigos.

Fecharam-se os negócios e o Sr. Amadeu estava de volta para Portugal. Mas não iria viajar sozinho, pois dias depois, levaria consigo um casal de Paris, até perto da cidade de Coimbra.

 

Passou-se um ano e os pais de Mário receberam em Carçolas as “Guias de embarque” para que o filho se apresentasse em Coimbra, no quartel militar, para fazer a Inspeção. Após muitas indecisões, Mário acabou por vir a Portugal de comboio para estar nessa Inspeção.

– Fiquei apurado e disseram-me logo que entrava em janeiro para fazer a Recruta no quartel de Tomar. Ainda faltam quatro meses. Vou-me mas é de novo embora Fo*-se, pensou para com os seus botões. Para vir não precisei de ninguém, vou mas é de novo até França. Apanho o comboio e seja o que Deus quiser. Que a Virgem Nossa Senhora de Fátima me ajude também.

Duas semanas depois da data de aniversário da primeira viagem, Mário encheu de novo a mala e deitou-se a caminho de França. Desta vez optou pelo caminho de ferro, comprou um bilhete até Vilar Formoso… e depois se veria.

Em Portugal, nada de especial e na estação de Vilar, como estava num comboio que iria até Paris, só teve o cuidado de descer, esperar que o comboio começasse a andar para, sem medos e rodeios, saltar novamente para o patamar e entrar na carruagem.

– Escondi-me na casa de banho, mas sem fechar a porta com o ferrolho e esperei quase meia hora antes de sair. Já tínhamos passado para lá de Fuentes de Onoro. Só fui comprar o bilhete na estação de Valladolid, mas se calhar, se eu viesse até França assim, nem pagava bilhete.

 

Em França, na estação de Hendaye, passou-se o mesmo cenário.

– Eu agora já percebia e dizia umas coisitas em francês. Fui ao “guichet” e comprei um bilhete para Paris Gare de Lyon. Disserem-me onde se ia formar o comboio e duas horas depois, já viajava em 2ª classe, em direção da cidade luz. Por duas vezes, consegui dar o “salto” com sucesso para vir para França. Estive até 1974 sem ir a Portugal, pois fui dado como “desertor”, fugi à tropa, mas depois da Revolução dos Cravos, alguns meses depois, voltei à minha terra e à família. Grande parte dos meus sonhos já estavam concretizados.

 

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