Emigrar, renunciar


“Onde estão seus livros?!!” A pergunta, formulada recentemente por alguém que dispõe de uma biblioteca maravilhosa, a princípio não me abalou. Na ponta da língua, a reposta veio nua e crua: “Doei tudo antes de vir para a França”. Foram quase 40 caixas para a Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e o restante distribuí entre os amigos.

“Mas eles não te fazem falta?”

“Imagina!”, reagi, achando-me a mais desapegada e pragmática do planeta. “Tenho tudo aqui dentro”. E, pretensiosa, apontei para a minha cabeça. “De resto, quando preciso, compro o que desejo pelo Kindle, que é prático e não ocupa lugar”.

Pensando bem, como poderia transportar para o outro lado do Atlântico a minha biblioteca pessoal? E mesmo que o fizesse, ela não caberia nos estúdios minúsculos de Paris. Além disso, em caso de mudança, de que modo carregá-la de lá e para cá, sendo que irei para meu nono endereço em oito anos de Europa?

Nada disso impediu meu interlocutor, observando as três mirradas prateleiras de volumes, a maioria de minha própria autoria, espremidas entre a porta de entrada e o banheiro, de comentar:

“Você tem mais sapatos do que livros…”.

Dei de ombros, mas aquelas palavras ficaram reverberando no meu cérebro. Logo comecei a refletir sobre o quanto abrimos mão ao emigrarmos. Renunciamos ao convívio com nossa roda de amizade, com a família, com os filhos. Renunciamos aos amplos espaços dos apartamentos, aos quintais de uma casa, ao sol e à luminosidade permanentes, à nossa língua materna como instrumento de comunicação no cotidiano. E, claro, aos livros, que vamos acumulando ao longo das décadas.

Daí, num estalo, após todo esse tempo, pela primeira vez admiti que sinto falta, e muita, desses testemunhos da minha trajetória afetiva, literária, intelectual, acadêmica, política. Minhas referências e pontos de apoio, meu porto seguro. Dei-me conta de que, por mais que pretendesse negar, cada um deles foi embora com um pedaço de mim grudado no meio das páginas.

Então, na calada da noite, chorei baixinho.

Chorei de saudades dos meus livros que partiram.

.

Márcia Camargos

Escritora e jornalista com um pós-doutorado na área de história pela Universidade de São Paulo e pela Sorbonne Université, tem 35 obras publicadas, entre ensaios, romances e infanto-juvenis. Mudou-se para a França em 2016, tornando-se um dos membros fundadores da União Europeia de Escritores de Língua Portuguesa (UEELP).

LusoJornal