Paris 7

Faleceu Américo Nunes (1939-2024)


O historiador Américo Nunes da Silva deixou-nos no passado dia 20 de janeiro. Nascido a 19 de fevereiro de 1939, em Lourenço Marques, hoje Maputo, exerceu a sua carreira universitária nas faculdades de História de Paris VII e Paris VIII. Era um especialista da América Latina e muito particularmente do México, onde efetuou pesquisas, tendo também trabalhado no Ruanda e na República dos Camarões.

Conversas no Quartier Latin

Tive o grato privilégio de conviver com Américo Nunes nos últimos dez anos. O café «Le Latin», na Saint André des Arts, era o nosso ponto de encontro, onde discutíamos os mais variados assuntos, com destaque para a atualidade política francesa e internacional que íamos acompanhando. Recordo também com saudade as frequentes visitas que efetuávamos às livrarias do Quartier Latin, destacando-se a «Gibert Joseph». O Américo andava sempre à procura de novas edições de livros de história e de filosofia, matérias que frequentemente procurava explicar àqueles que o encontravam no café. Dotado de um firme espírito crítico, insurgia-se contra as ameaças à laicidade que se têm registado na França.

Nem sempre estivémos de acordo, designadamente sobre o valor científico da psicanálise. Muito falámos acerca da vida em África, sobretudo na zona austral. Ele afirmava que nunca poderia compreender que no continente africano, depois das descolonizações, houvesse tanta miséria, corrupção, ditaduras e tragédias humanitárias. Sentimo-nos particularmente preocupados com a recente situação no norte de Moçambique, perante a vaga de violência praticada pelos grupos islamistas.

Juventude em Moçambique

Com poucos anos de idade, Américo Nunes foi viver para Ressano Garcia, localidade situada na fronteira com a África do Sul, onde o seu pai, funcionário das alfândegas, tinha sido colocado. Voltou mais tarde a Lourenço Marques, onde frequentou os primeiros anos do ensino secundário. Foi colega, no Liceu Salazar, do futuro Presidente moçambicano Joaquim Chissano e também de Pascoal Mocumbi que veio a ser Ministro da Saúde. Estes seriam dos poucos negros a frequentar o liceu. Anos depois, em 1956, Américo Nunes foi viver para a cidade da Beira, concluindo o curso secundário no Liceu Pêro de Anaia. A vida na Beira deixou-lhe imensas recordações, muito particularmente o convívio com membros destacados do cine clube da segunda cidade moçambicana, entre os quais o futuro cineasta Rui Nogueira e também Fernando Couto (pai do escritor Mia Couto) e, igualmente, o poeta Virgílio de Lemos e o futuro sociólogo Fernando Medeiros e Eduardo, o irmão deste último, e ainda Sebastião Alba. Com estes e outros, Américo Nunes, iniciou-se nas questões políticas, absolutamente contra as orientações que o Governo de Salazar impunha então a Portugal e às colónias. «A Beira era, nos anos cinquenta, uma cidade de esquerda», disse-me repetidamente, lembrando que em 1958 o general Humberto Delgado, candidato da oposição, tinha alcançado a maioria dos votos naquela cidade moçambicana, numa eleição que não foi livre, nem honesta.

Lisboa e Paris

Concluido o sétimo ano e por não haver ainda universidades em Moçambique, Américo Nunes instala-se em Lisboa em 1960. Mas não lhe interessaram muito as aulas de História e de Filosofia na Faculdade de Letras, tendo porém mantido contactos, sobretudo políticos, com os estudantes lisboetas, num período de alguma agitação. Na realidade, o tema que mais lhe interessava era a Revolução Francesa, sem esquecer a literatura vinda de Paris. Era um perfeito francófilo e logo decidiu trocar Lisboa pela capital francesa, onde chegou em 1961. Aqui se encontrou com o futuro sociólogo de origem moçambicana Albano Cordeiro, recentemente falecido tal como pudémos ler no LusoJornal.

Em Paris, esteve também em contacto com Eduardo Mondlane, o fundador da Frelimo, e também com Marcelino dos Santos e Sérgio Vieira futuros Ministros moçambicanos. Participou também nas atividades da União dos Estudantes Moçambicanos que antecedeu a fundação da Frelimo. Foi graças a Mondlane que Américo obteve a assistência da CIMADE, organização protestante de auxílio aos refugiados. Apesar de apoiar a indepêndencia de Moçambique, Américo Nunes não quiz aderir à Frelimo. Preferiu manter-se independente. Esteve também em contacto com militantes independentistas angolanos e argelinos, nas vésperas da assinatura dos acordos de Evian, concluídos em março de 1962 e que conduziram à independência da Argélia.

Argel e Guevara

Em julho de 1963, Américo Nunes dsembarca em Argel, onde se encontra com Carlos Lança que tinha conhecido, anos antes, no Cine Clube da Beira. Lança, de tendência trotskista, era acompanhado por Patricia McGowan Pinheiro que publicou, nesse mesmo ano, o livro «Le Portugal de Salazar». Mas surgiram desavenças e Américo com a sua companheira Pauline foram trabalhar para a delegação da agência noticiosa cubana «Prensa Latina». Fartou-se de traduzir para francês discursos de Fidel Castro. E chegou a encontrar-se com Che Guevara, revolucionário argentino e ex-Ministro de Fidel, que se tinha deslocado a Argel para participar numa conferência afro-asiática em 1965. Nessa conversa, Américo ficou convencido de que Guevara tinha entrado em dissidência perante os soviéticos, o que preocupou seriamente os diplomatas cubanos presentes na capital argelina.

Ainda em Argel, na altura capital mundial dos esquerdistas, Américo manteve contactos com elementos da Frelimo e também com angolanos partidários da independência, entre os quais Mário Clinton. Foi amigo de um dos fundadores do MPLA, Viriato da Cruz, antes de este partir para a China.

Também se relacionou com exilados portugueses que faziam parte da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLP), tendo conhecido o general Humberto Delgado. E veio igualmente a conviver com elementos da Frente de Ação Popular e do Comité Marxista-Leninista, dissidentes do Partido Comunista Português. No entanto, nunca aderiu a estes grupos pró-chineses, talvez por se sentir nessa altura mais próximo do trotskismo.

Regresso a Paris

Depois do golpe de Boumédiènne, que destituiu o presidente Ben Bella em 1965, Américo Nunes decide abandonar Argel, que tinha deixado de ser a «capital das revoluções», e regressou a Paris. Era altura de começar ou de recomeçar os estudos. E assim inscreve-se na Sorbonne, vindo mais tarde a frequentar a Ecole Pratique des Hautes Etudes, cujos diplomas lhe abriram depois o acesso ao professorado a partir de 1972. Paralelamente, continuou a interessar-se pelas questões políticas. Participou na agitação estudantil de 1968 principalmente na faculdade de Censier. Em 1965 relacionou-se com o historiador do movimento operário Robert Paris e também com o ensaísta Alfredo Margarido, com o historiador Carlos da Fonseca e igualmente com Jacques Baynac, documentarista e também historiador. Foi este último que o aproximou das teses dos conselhos operários, veículadas pela revista «Socialisme ou Barbarie», vindo também a interessar-se pela história do anarquismo.

Em 1975, Américo Nunes publicou «Les Révolutions au Méxique», uma obra editada pela Flammarion e reeditada em 2010 pela Ab Irato. Continuando a interessar-se pelas experiências libertárias e utópicas, particularmente no México, publicou em 2019, nesta última editora, um vasto trabalho intitulado «Ricardo Flores Magón : une utopie libertaire dans les Révolutions du Méxique».

Vasta memória

Está prevista para 2025 a publicação de um livro com memórias de Américo Nunes.

Devo lembrar que ele tinha uma enorme memória em vários capítulos, o que foi repetidamente salientado no passado dia 9 de fevereiro no Père Lachaise por familiares, amigos e antigos alunos.

Pela parte que me toca, recordo com saudade que Américo Nunes continuava a ser um grande cinéfilo, lembrando-se sempre, em pormenor, dos atores e dos realizadores dos grandes filmes.

Ele visitava frequentemente a Grécia. No ano passado, deslocou-se ao Porto para visitar a irmã e a sobrinha. Veio de lá encantado e tencionava voltar a Portugal, dentro em breve…



LusoJornal