LusoJornal | Mário Cantarinha

Homenagem: A “Reflexão de um emigrante” de António Cravo recitada pelo ator Jorge Tomé

O escritor, historiador e sociólogo Jaime Gonçalves, mais conhecido pelo pseudónimo de António Cravo, falecido recentemente, foi homenageado nos Salões Eça de Queirós do Consulado-Geral de Portugal em Paris, numa sessão organizada pelo editor João Heitor e na qual participou a viúva, Maria do Céu Gonçalves, os dois filhos do homenageado, Paula e Rui Gonçalves, a Cônsul-Geral de Portugal em Paris, Mónica Lisboa e o professor José Carlos Janela.

O ator Jorge Tomé leu um texto intitulado “Reflexões de um emigrante que, segundo João Heitor, chegou a ser recitado pelo grupo A Pedrinha no Centre Georges Pompidou, em Paris, na presença de Jack Lang e de Jacques Delors.

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Reflexão de um emigrante

Pouco andaste, minha pedra amiga, que viste a minha partida naquela noite da escuridão, quando saí para a emigração. Hoje, porém, faz bom sol e canta o rouxinol por trazer um cibo de pão.

Deixa-me beijar-te num respeitoso cumprimento e confessar-te um pouco de sofrimento. Deixa-me repousar este corpo que o trago quase morto.

Lembras-te daquele dia, aqui, junto de ti, que todo eu era energia, todo eu era ansiedade, todo eu era esperança de fazer melhor vida em França?

Na verdade, juntei uns pataquitos, comprei umas territas, fiz uma casa jeitosa, venho com aquele carrito e tirei-me da miséria, conheci um pouco o mundo e não era pequena a féria.

Agora, como a vaidade passou e confidenciando contigo, pois que me fiz teu amigo, bem caro isso me custou. Quando olho para os meus braços, observo as minhas mãos e tremo das minhas pernas e me canso do meu coração, pergunto com nostalgia: onde deixei as forças daquele dia?

Comecei-as a perder atrás do passador, cortando montes e vales, rios e florestas, com as gotas do meu suor, pelo esforço e pelo medo, escondido no silvedo, pela tortura na prisão em que caiu o outro irmão.

Mas tu sabes lá, pedra amiga, as dificuldades que passei, logo que à França cheguei, por não saber falar a língua daquele povo, parecia menino de novo.

A par de outros dissabores que tive com os passadores e me encontrei nos piores trabalhos, os roubos que me fizeram, aos vexames a que me expuseram e às situações de más habitações. Mas o maior sofrimento foi o longo isolamento no campo do meu quarto. Até que eu levei a família, pois já andava muito farto, minha pedra amiga.

Os que foram comigo nem todos regressaram. O meu maior amigo, os miolos lhe estouraram. Outro camarada o levou a enxurrada, ficando amortalhado. E outros que vi, por lá deixaram o seu corpo. Alguns deles os conheci no momento de ser morto.

Outros se lastimam, recordando-lhe as mulheres e a sua infidelidade. E outros, com maldade, trocaram as mulheres por outras que amavam.

Ah, minha pedra amiga, e os portugueses no estrangeiro? Para com seu irmão, miram-lhe o dinheiro. E em vez de os ajudar, tentam-lhes roubar.

Sabes, pedra amiga, que naquela corrida os portugueses se atropelam, como lobos no carneiro, competindo uns com os outros. Só para terem mais dinheiro. Em vez de uma irmandade, devoram-se com falsidade.

E se visses os tutores, que daqui para lá vão resolver os problemas? Ah, pedra amiga, também entram na corrida sem nos darem solução. E porque são tutores, armam-se todos em senhores, desprezando os emigrantes, com ares de pedantes, quase não sendo portugueses, mas são. ‘Le petit portugais’, tal como o emigrante é. Que ridículo este português em geral, que naquela França, todos somos Portugal.

Ouvi dizer, num discurso, que emigrar é a vocação dos portugueses. Mas às vezes faz-me confusão. Pois dantes, na mesma terra, com menor população, tanta gente saiu dela à procura do mesmo pão. O que me dizes, pedra amiga, a esta minha observação?

Sabes, querida amiga, que fiz pior que a formiga. Nem soube descansar, pois sonhei comprar uma grande propriedade, por ser de fulano tal, pensando que seria igual, como eu, na sociedade. Foi dinheiro mal gastado, chego a esta conclusão. Porque venho arruinado, sem poder cultivá-la, deixando-a em pousio, não dando rendimento nem para arrendá-la.

Apesar das dificuldades, fiz bem ter emigrado.

Porque, se não saísse, como já alguém disse, não vivia desafogado.

Porém, penso nesta cabeça, por estranho que pareça, se isto fosse bem governado, podia não ter emigrado.

Até logo, até logo, pedra amiga!

Agora sigo outra corrida.

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Texto de António Cravo
Recitado pelo ator Jorge Tomé