“Julia”, de Christiane Jatahy: ecos modernos de “casa grande” e “senzala”

[pro_ad_display_adzone id=”37509″]

 

A peça “Julia”, de Christiane Jatahy, recentemente em cartaz em Lyon, no Théâtre de la Croix-Rousse, põe em cena uma mulher branca (Julia) e um homem negro (Gelson) num jogo artístico que mistura cinema e teatro.

Julia é a filha do patrão de Gelson, motorista da família. Eles desenvolvem uma relação amorosa particular, que coloca em relevo preconceitos, machismo e dolorosos efeitos da desigualdade social. A obra é inspirada na peça “Mademoiselle Julie” (1888), de August Strindberg, que a dramaturga adapta à realidade brasileira dos dias atuais.

Em certo sentido, a peça faz pensar no filme “Casa Grande” (2015), de Fellipe Barbosa. Nele, seguimos o cotidiano duma família brasileira rica, composta pelos pais e pelos dois filhos, Jean e Nathalie, todos brancos. Eles têm três empregados: Severino, Noemia, e Rita. Noemia é negra; Rita e Severino são originários do nordeste – uma das regiões mais pobres do país. A vida de todos sofre importantes transformações quando o pai, principal provedor da família, vai à falência.

As duas obras denunciam elementos essenciais da sociedade brasileira. Um deles é o racismo. Central na peça, fonte de insultos pronunciados por Julia contra Gelson, ele aparece no filme pelo viés do sistema de cotas. Na trama, o protagonista, Jean, está preparando-se para passar o vestibular, precisamente no período em que as cotas raciais são implementadas no país. Essa política impõe que se reservem parte das vagas nas universidades públicas aos estudantes negros e pardos, no intuito de ressarcir uma dívida histórica com essa população, formada sobretudo por descendentes de escravizados. Contudo, as pessoas do convívio de Jean (seus familiares e colegas do colégio particular em que estuda) não concordam com essa iniciativa. A discussão vem à tona durante um churrasco em que o personagem apresenta à família sua namorada, Luíza, que é mestiça e aluna de escola pública.

A temática da violência contra a mulher também está presente em ambas as obras. Na peça, Julia sofre violência física e moral da parte de Gelson. No filme, Nathalie é o personagem feminino que sofre por ser mulher. Ela nunca é ouvida, sendo praticamente ignorada pela própria família, que só se interessa pelo rapaz.

Também o dinheiro aparece como um elemento-chave nos dois trabalhos. Em “Casa Grande”, quando o pai perde sua fortuna, ele perde tudo: os seus empregados, a sua casa, mas também o respeito que parecia ter perante a todos. É como se, na sociedade brasileira – como em outras sociedades movidas pelo capital -, a única coisa que importasse fosse o dinheiro. Na peça, o desejo de Gelson por Julia parece estar fundamentado em seu interesse de que ela roube o dinheiro do pai para que abram um negócio juntos.

Para além disso, o elemento que une de forma mais evidente as duas obras é a relação entre um empregado e um dos filhos da casa. No filme, Jean insiste em se envolver com Rita – o que acaba por acontecer, no fim. Tanto ele quanto Julia são muito mais jovens do que os funcionários. Esse ato sexual representa uma transgressão de classes, que é condenada tanto pelo grupo dos patrões quanto pelo dos empregados, nas duas tramas. Tudo os separa (cor da pele, idade, situação social); mesmo assim, a proximidade acontece.

Mais do que atração sexual, esse encontro simboliza os resquícios da sociedade escravocrata no Brasil de hoje. Destaca-se que, nos dois casos, é o patrão (ou a patroa) quem visita o “quartinho de empregada” – e não o contrário.

O título do filme salienta o poder, ainda existente, da “casa grande” sobre a “senzala”.

As obras são paradoxais em si. A primeira imagem do filme é a de uma mansão imponente; a última é a de Jean, num quarto de favela, com Rita. Esse contraste reforça os dois extremos presentes no Brasil. Em “Julia”, veem-se, a princípio, as filmagens da infância da menina. No fim, a jovem encarna a inocência perdida com a consumação do amor proibido, numa sociedade classista e desigual.

Para quem não pôde ver a peça, ainda dá tempo de assistir a outro espetáculo da dramaturga Christiane Jatahy, estrelado também por Julia Bernat: “Entre chien et loup”, ainda em turnê pela França.

 

Texto de Matilde Gonçalves Roças

Aluna do Département d’Études des Mondes Hispanophone et Lusophone Université Lyon 2

 

Revisão: Angélica Amâncio

Professora no mesmo Departamento

 

[pro_ad_display_adzone id=”46664″]

 

LusoJornal