Livros: Lisboa, de Olisipo a Al-Usbuna

Marc Terrisse, doutorado em História e que se vem interessando na problemática do lugar das minorias na História e na cultura europeias, acaba de fazer chegar às livrarias “Lisbonne, dans la ville musulmane” (Editions Chandeigne). Obra que será apresentada esta sexta-feira, dia 29 de março, às 19h00, pelo autor, na Librairie Petite Égypte, no 35 rue des Petits Carreaux, 75002 Paris.

Um “guia”, segundo o próprio autor, que visa ultrapassar “um longo esquecimento que durante a ditadura, tal como noutros países, foi provocado pela vontade que se tinha de escrever uma fábula nacional com o qual a maioria se pudesse identificar, e essa fábula em Portugal começa com Dom Afonso Henriques” e consequentemente “os muçulmanos foram excluídos dessa fábula nacional”, concluindo que “hoje, apesar de tudo, as coisas estão a mudar”.

Em Portugal, os estudos historiográficos ao longo destas décadas de Democracia passaram a dar a atenção devida aos longos 500 anos de presença muçulmana em território português. O melhor exemplo desse interesse é a cidade de Mértola, no Alentejo, que inseriu os inúmeros vestígios muçulmanos, nomeadamente os arqueológicos, no seu próprio ADN contemporâneo. Em França, todavia, essa faceta da História de Portugal é desconhecida, daí a importância deste “Lisbonne, dans la ville musulmane” que aparece num contexto de boom turístico que tem levado a que milhões de visitantes entrem pela primeira vez em contacto com as culturas lusófonas e o passado português.

É sabido todavia que, depois de Atenas, Lisboa é a segunda capital europeia mais antiga do continente. Quinhentos anos mais antiga do que Roma, por exemplo. Fundada há 3.200 anos pelos Fenícios, e chamada de Olisipo, a maior cidade portuguesa tornou-se desde então num palimpsesto de culturas, uma terra que recebeu tantos povos, tantas línguas e tantas religiões que, ao olharmos para o movimentado passado lisboeta, podemos ser tomados por vertigens.

Hoje, cidade multicultural por natureza, tal como qualquer grande cidade da Europa ocidental, Lisboa tem recebido o reconhecimento universal. Basta para isso analisarmos o já referido crescimento exponencial dos números do turismo, um fenómeno ambíguo que, ao mesmo tempo que a reabilita, a vai gentrificando, expulsando os seus habitantes mais pobres para a periferia, um movimento que, como dizem alguns entendidos, ao descaracterizar a cidade, ao roubar-lhe a genuinidade, poderá conduzir à “morte da galinha dos ovos de ouro”. É um facto que o encanto das cidades portuguesas advém essencialmente das pessoas, sejam alfacinhas ou tripeiros, que as habitam, tornando-se portanto urgente evitar que as deixemos transformarem-se em meros parques de diversão turísticos sem vida e sem alma.

“Lisbonne, dans la ville musulmane” focaliza-se na presença efetiva dos muçulmanos na cidade (714-1147), então chamada de Al-Usbuna e enquadrada no Al-Andalus, mas vai muito além disso. Prolonga-se até ao período dos Descobrimentos, da Inquisição e da conversão forçada de muçulmanos e judeus ao cristianismo, sem porém esquecer o presente: Lisboa é hoje a casa de uma comunidade de 40 mil muçulmanos oriundos dos mais diversos países. Uma comunidade bem inserida, embora, felizmente, em nome da diversidade que nos enriquece a todos, não assimilada.

Marc Terrisse não esquece que esta presença, mais tarde, teve a direção contrária. “Os Portugueses foram os primeiros europeus a partir rumo ao mundo muçulmano. Em 1415, deu-se a tomada de Ceuta e a partir daí foram criadas várias feitorias em Marrocos, nomeadamente a de Mazagão que perdurou até à segunda metade do século XVIII”, acrescentando que “no dialeto marroquino existem várias palavras de origem portuguesa”.

Um livro que é também uma viagem alicerçada numa vasta documentação histórica que analisa uma troca reciproca de influências culturais que, no caso português, levou à criação de elementos patrimoniais tão importantes como o fado, a língua (a enorme quantidade de palavras de origem árabe presente na língua portuguesa), a ciência (a expansão marítima portuguesa não teria sido possível sem os conhecimentos deixados pelos muçulmanos tanto na arquitetura naval como nas técnicas de navegação) e, claro, a gastronomia.

Um livro a não perder e que nos espantará pela quantidade de factos que pensávamos conhecer, mas que na verdade desconhecíamos totalmente.

 

LusoJornal