Livros: Os traumas que se escondem debaixo da pele

Depois de “Indice de Bonheur Moyen” (L’Aube, 2017) – publicado em Portugal como “Índice Médio de Felicidade” (2013), obra que garantiu a David Machado (1978) o Prémio da União Europeia para a Literatura em 2015 – o autor regressa às livrarias francesas com “Les abeilles sous la peau”, o seu terceiro romance editado em Portugal como “Debaixo da Pele”.

“Les abeilles sous la peau” divide-se em três partes que representam três momentos cronológicos diferentes – 1994, 2010 e 2017 – cada um deles narrado por um personagem distinto. Essas três histórias, que se ligam de maneira não linear e giram em torno de uma mesma infância (cujas ocorrências servem para explicar atos futuros), tratam o medo, os traumas emocionais indeléveis e certas convenções sociais que cheiram a naftalina.

O romance começa por nos falar de violência contra as mulheres, um tema que começa a tornar-se recorrente na Literatura portuguesa mais recente, o que é natural visto tratar-se de um dos mais relevantes flagelos a afetar as nossas sociedades, embora quase sempre abordado por escritoras, sendo David Machado uma salutar exceção.

Júlia, 19 anos em 1994, foi violentada por um antigo namorado – basta estar atento para verificar que este tipo de agressão continua maciçamente em 2019. Incapaz de ultrapassar esse trauma, que esconde da família e amigos, ela decide afastar-se do mundo. Porém, não parte sozinha. Júlia – as paredes de sua casa são pouco espessas – escuta as constantes discussões dos seus vizinhos, sendo a vizinha, sem surpresa, vítima de violência doméstica. Esse casal disfuncional tem uma filha de cinco anos, Catarina. Descobrindo dentro de si um instinto maternal desconhecido, Júlia, deprimida, rapta a pequena Catarina e, tentando protegê-la, parte rumo a um lugar onde não exista sofrimento. Mas, como se sabe, esse lugar não existe e as coisas acabam por correr mal.

A segunda parte dá um ar de Nabokov à obra. Um escritor mantém uma relação amorosa com a sua Lolita que, paralelamente, mantém um outro namoro com um jovem da sua idade. Esse homem de meia-idade narra os acontecimentos que o levaram à prisão.

Por fim, a terceira parte, no Alentejo mais profundo, um rapaz de dez anos começa a descobrir que o mundo que existe é muito maior do que aquele ao qual o desejo de isolamento da mãe o submeteu. Esta vontade quase patológica que a mãe tem de proteger o filho liga-se, lá está, a um trauma de infância.

Um romance que utiliza a dor traumática para nos contar uma (três) bela(s) história(s) e que poderá servir de rampa de lançamento para conhecer a restante obra de David Machado, um dos bons escritores (e existem muitos!) portugueses nascidos no pós-25 de Abril.

LusoJornal