Nuno Gomes Garcia conversa com Ana Cristina Silva: «A emigração é uma odisseia»

«Salvação» é o novo romance de Ana Cristina Silva, professora universitária no Instituto de Psicologia e escritora.

Autora de uma dezena de romances, muitos deles romances históricos, tais como «As Fogueiras da Inquisição», «Cartas Vermelhas», «O Rei do Monte Brasil» (que foi vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues), «A Dama Negra da Ilha dos Escravos» ou «A Noite não é Eterna» (que venceu o Prémio Fernando Namora), Ana Cristina Silva regressa com um romance cujo principal personagem é também um escritor, o que permitiu à autora, segundo as suas próprias palavras, «refletir sobre muitas questões da vida literária».

Em «Salvação», um escritor tenta superar a morte da sua mulher através da escrita de um romance histórico, cujo protagonista, David Negro, um judeu do século XVII, viu a esposa ser presa e julgada pela Inquisição. Um momento terrível que marcou a sua movimentada vida decorrida entre Lisboa, Amesterdão e Hamburgo.

Um romance dominado por dois tempos distintos – os últimos dias da vida de David Negro e os meses de luto do narrador – que se desenvolvem em capítulos entrecruzados e narram a perda e a redenção.

 

Cristina, logo no começo deste teu romance aparece uma frase que anuncia o poder da literatura. Pouco antes de morrer, Sofia, a esposa do protagonista, diz o seguinte ao marido: «Escreve, quando eu morrer, escreve um novo romance. A escrita vai ser a tua salvação!». Eu sei que escreveste este livro durante um período difícil da tua vida. Por isso te pergunto: pode a literatura amenizar a dor?

O livro é, entre outras coisas, sobre o poder redentor da escrita, no sentido em que todos nós nos narramos a nós próprios. Eu falo, agora, do leitor comum. Nós narramos nomeadamente o passado, e essa é uma das formas de encontrar o sentido da vida. O escritor faz isso através de, digamos assim, truques profissionais. Uma das formas do escritor retratado no romance superar a sua dor, foi escrever um romance, porque escrever um romance, como tu sabes muito bem, é uma espécie de realidade virtual e paralela. Ora, a escrita permitiu-lhe ir gradualmente ultrapassando as várias fases normais do luto, desde o sofrimento muito intenso que o afastou do mundo até à fase que lhe permitiu olhar de novo para o mundo. Em relação a mim… Quando eu fui atropelada na passadeira, o livro já estava escrito, mas ele salvou-me, de facto. Estava escrito, mas não estava revisto e depois ainda lhe acrescentei umas partes. Bem, eu fui atropelada e sofri uma lesão no hemisfério esquerdo do cérebro, responsável pela linguagem. Depois, quando estava a escrever, sentia imensas dores de cabeça, mas tinha de provar a mim própria de que continuava a ser capaz. Sentia uma urgência em acabar o livro e a escrita trouxe-me uma certa calma, tal como aconteceu com a minha personagem. Parece que neste livro, eu fui atrás da personagem.

 

E já tinhas o título do romance antes do acidente?

Já o tinha, sim.

 

Este teu livro, que é complexo na sua estrutura, não foge aos temas quentes da atualidade, abordando nomeadamente o fanatismo religioso. Tanto abordas o fanatismo cristão que criou a Inquisição como o fanatismo islâmico que criou o Daesh. Quais os elementos comuns que encontras entre os fanatismos do século XVI e os fanatismos atuais?

Esse foi o objetivo do livro, o de falar dos fanatismos presentes nas três religiões monoteístas. Esse livro era para ser apenas um romance histórico, mas depois deu-se o atentado de Bruxelas, que nem sequer vem referenciado no livro… Eu passei muito tempo no aeroporto de Bruxelas… e como é um local que me é familiar, meteu-me ainda mais impressão…

 

Mas estavas em Bruxelas no dia do atentado?

Não, não estava, mas foi isso que deu origem à parte do escritor no romance. A parte histórica já estava escrita e falava de dois fundamentalismos, o católico, representado pela Inquisição, e o judeu, neste caso representado por uma personagem fascinante, que é pouco conhecida, um filósofo cristão-novo português, o Uriel da Costa, um livre-pensador, que foi excomungado pelos judeus por ter posto em causa a imortalidade da alma. E, portanto, desenvolveu-se nesse sentido também falar do Daesh na parte do escritor, porque uma das coisas que o faz chamar para a realidade é o horror desses atentados. E uma das coisas que eu digo no livro, não sei se estás recordado… às tantas, o escritor, a propósito de um testamento deixado por um desses jovens mártires do Daesh, diz que já tinha escrito aquilo a propósito de um sermão de um frade dominicano durante um auto de fé. No fundo, então, a luta contra os hereges, de encontrar no «outro» o inimigo, o «outro» que tem uma outra religião, é uma coisa quase tão antiga, tão antiga…

 

Tão antiga como a própria humanidade…

Isso, exatamente. Antiga e incompreensível… Aliás, a própria personagem, o escritor, a propósito da escrita do século XVII, diz que está farto de escrever sobre extremismo e que continua sem compreender o que é que leva uma pessoa a matar outra por motivos religiosos. E a mim, aconteceu-me a mesma coisa.

 

Este teu livro passa por Amesterdão, Lisboa, Hamburgo… é um livro que fala de exílio. Tu és cronista no Portugal Post, um semanário português da Alemanha, participaste numa coletânea de contos sobre a Emigração, aliás participamos ambos com mais um punhado de autores, apresentaste também este romance há pouco tempo em Bruxelas… Vê-se que tens uma ligação forte à Diáspora, coisa rara nos escritores que vivem em Portugal. Mas nunca foste, tu própria, emigrante. De onde vem essa ligação?

Por acaso acho que falta – talvez um dia eu o escreva, ou tu, quem sabe – um grande romance sobre a emigração. O principal drama da emigração, e tu sabes isso melhor do que eu, e que se tem prolongado ao longo do tempo, é a perda das raízes, a questão da identidade, de não se ser nem de lá nem de cá…

 

É por isso que é tão importante, nós por aqui, longe de Portugal e da nossa língua materna, termos a possibilidade de te ouvirmos, a ti e a outros escritores, para que essas raízes se preservem um pouco… estas conversas que vamos tendo não são, claro, nenhuma panaceia, mas ajudam um pouco nesse sentido.

Claro, a maior parte dos emigrantes procura preservar as suas raízes porque quer manter essa identidade que é tão importante para eles, ainda mais importante por estarem tão afastados. Como quase toda a gente, eu tive parentes emigrados… e, talvez por isso, eu tenho verdadeiramente vontade de escrever um romance sobre a emigração, nomeadamente sobre a emigração em França. Ou então podes ser tu a fazê-lo…

 

Eu acho que talvez esteja demasiado por dentro… tem de ser com um olhar mais exterior do que o meu…

A emigração é uma odisseia que tem de ser olhada com a devida atenção por quem vive em Portugal e que não compreende verdadeiramente o sofrimento, que lá vai sendo atenuado, com altos e baixos, no dia a dia, porque se cruzam esses dois fatores: primeiro, o processo de adaptação, que é extremamente difícil, por causa da língua, da cultura, e, segundo, a gradual perca de raízes, onde as pessoas sentem que nem são de cá nem de lá…

 

Sim, a emigração enriquece um ser humano, toda essa diversidade em que se vive e se comunica; todavia, ao mesmo tempo, torna tudo muito bizarro porque gera uma certa multiplicidade que nos deixa sem pé de apoio. Isso nota-se muito nos lusodescendentes, por exemplo.

É isso mesmo.

 

Bem, Cristina, chegamos ao fim. Para terminarmos, sugere-nos um romance.

Gostei muito da «Pátria» do Fernando Aramburu.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Sérgio Mendes autor de «O quarto da mãe»

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