Nuno Gomes Garcia conversa com Ana Rodrigues Oliveira: “O homossexual era punido pelo fogo”

Ana Rodrigues Oliveira é historiadora e especialista em cultura e mentalidades da Idade Média e, depois de ter publicado obra sobre as rainhas portuguesas, a vida quotidiana e o papel da criança nas sociedades medievais, regressa agora com “O Amor em Portugal na Idade Média”. Uma investigação de mais de 300 páginas que levará o leitor a construir inevitáveis pontes entre aquela a que erradamente chamamos “Idade das Trevas” e a atualidade. Um paralelismo que fará chegar à conclusão que, embora a inventividade fosse semelhante à da nossa época, as diferenças surgem, aterradoras, na penalização medieval das chamadas “transgressões”. O adultério ou a homossexualidade, por exemplo, estavam regulamentados pela lei da igreja e eram muitas vezes punidos com a morte.

Sendo os sentimentos temas sempre muito difíceis de tratar em historiografia, a autora contorna com mestria essa dificuldade e consegue canalizar a leitura de maneira a que o leitor evite projetar sobre o passado o modo moderno de ver as coisas, pois, se semelhanças havia, as diferenças, elas, começam imediatamente no significado medieval da própria palavra “Amor”.

 

Ana, a palavra Amor tinha um sentido muito diferente na Idade Média. Hoje, ligamos o amor a algo imediatamente erótico. Ora na Idade Média era diferente. Pode explicar-nos?

Na Idade Média, a palavra Amor é uma palavra plural, pois abrangia vários sentimentos aos quais nós hoje damos nome, o afeto, a amizade, o desejo, a paixão, o erotismo, a sexualidade… portanto, nós hoje temos nomes para determinados sentimentos. Na altura, a palavra Amor englobava todos esses sentimentos. Mesmo que algumas dessas palavras, como os casos da sexualidade, heterossexualidade, homossexualidade, não sejam palavras medievais, elas surgiram muito mais tarde, isso não significa que à época esses sentimentos não tenham sido vividos, sentidos e usufruídos. Quando falamos, por exemplo, a nível conjugal, a palavra Amor incluía outros sentidos como cumplicidade, respeito, admiração… Nós hoje temos uma multiplicidade de palavras para descrever as coisas, na altura tudo isso se encaixava na palavra Amor. Nesse aspeto era muito mais simples. Era uma palavra com uma multiplicidade de sentimentos incluídos.

 

Não é portanto uma coisa extraordinária que durante uma investigação possamos ter a oportunidade de ler em documentos medievais um cavaleiro a confessar o seu amor por um outro cavaleiro sem que isso tivesse qualquer contorno erótico?

Não, de modo nenhum, embora muitas vezes haja cronistas, nomeadamente o Fernão Lopes, que queiram levar esse tema quase para uma situação de quase homossexualidade, o que é facto é que a palavra Amor no seio de um grupo de cavaleiros podia significar uma amizade forte, viril, e não propriamente uma componente homossexual. Aliás, o rei Afonso X, o rei sábio – um rei castelhano que foi pai de uma rainha portuguesa e que teve várias compilações legislativas de grande importância em Portugal – utilizava então a palavra Amor para se referir à amizade entre o rei e os seus conselheiros. Ele diz que o rei deverá amar os seus conselheiros, ter plena confiança neles e tratá-los bem. Não havia nisso qualquer tendência homossexual, embora ela existisse, claro, existiu em todos os tempos.

 

Mas falemos então dessas “transgressões” do amor. Perante a nossa liberdade contemporânea de amar quem e como quisermos, as restrições medievais podem chocar a nossa sensibilidade, pelo menos nas sociedades onde vivemos. Que tipo de punições sofria um adúltero ou um homossexual? A lei era, na prática, mais permissiva com os homens do que com as mulheres?

Tanto a lei canónica como a lei civil proibiam esse tipo de transgressões e proibiam de tal forma que em determinados casos a punição era a morte. Temos todavia de levar em consideração que é errado pensarmos que toda a Idade Média é igual, monolítica.

 

Claro, estamos a falar de mil anos, existem transformações enormes ao longo daquilo a que chamamos Idade Média.

Sim, são mil anos e há muita coisa que muda. Na própria legislação civil também vai mudando, ora é mais agressiva, ora tem mais atenuantes, mas de qualquer das formas, fosse a violação, fosse a homossexualidade, qualquer destas transgressões era punida, inclusivamente com a morte. Situações em que na Idade Média o homossexual era punido pelo fogo, queimado vivo para se acabar com o mal de uma vez por todas. Na Idade Média as pessoas arriscavam e arriscavam muito. Nos nossos dias, nós sabemos que podemos fazer mais ou menos aquilo que nos apetecer que escaparemos a grandes castigos, na Idade Média não se brincava com essas coisas. Era-se morto.

 

Levando em conta que a própria ciência médica evoluiu ao longo desses tais mil anos que durou a Idade Média, deixe-me referir um dos capítulos do seu livro, o décimo, creio, que fala de “os males de amor”. A Ana refere a sufocação do desejo erótico, as doenças do pénis e dos testículos, o histerismo feminino… Como é que se lidava com esses problemas, quer física quer psicologicamente? Que tipo de receitas, tratamentos eram recomendados?

Lidava-se, atenção, de uma forma muito escondida. Esses males, essas doenças, eram as vergonhas da época. Para a Igreja todos esses males eram pecados. As pessoas tentavam lidar com esses problemas utilizando todo aquele tipo de mezinhas que são as panaceias da Idade Média, tratamentos à base de produtos vegetais, animais, minerais. Podiam ser emplastros com misturas desses produtos todos, dependia claro do tipo de doença. Cada um tinha a sua terapêutica própria.

 

Percebe-se também ao longo da leitura que, sexualmente falando, a mulher do povo, a mulher oriunda da base da pirâmide social, apesar de tudo, tinha mais liberdade sexual do que a mulher aristocrática. Estou certo?

Sim, tinha, à partida tinha. Repare, ela vivia num ambiente mais livre, enquanto a mulher da nobreza estava confinada ao seu paço, ao seu palácio, à sua casa senhorial, normalmente muito vigiada, com aias… Já a mulher do povo não, ela circulava pelos campos, ia à fonte, ia lavar roupa, ia colher os cereais, ia aos bosques, às florestas, locais muito mais propícios aos encontros. Havia portanto uma maior liberdade de movimento. A própria mulher burguesa, isso é outro estereótipo da Idade Média, também tinha mais liberdade, tal como a mulher comerciante. Donas das suas tendas, lojas, podiam fazer o seu negócio. Existiam solteiras ou viúvas que tinham o seu próprio negócio e isso dava-lhe uma liberdade de movimento, de espaço, que não se compara com o da mulher nobre. O casamento das mulheres nobres nada tinha que ver com Amor, era sim uma forma de alianças entre famílias que se estabeleciam, se consolidavam, transmitiam-se linhagens, interesses, patrimónios, privilégios. O Amor, claro, poderia aparecer ou não, mas o Amor não era a causa do casamento, poderia ser, sim, a consequência do casamento. No caso da mulher do povo, no caso dos camponeses, desde que houvesse qualquer património, o casamento também não era tão livre assim. Repare que a própria palavra “casal” é uma leira, uma terra, uma unidade territorial além de uma unidade familiar. Mesmo no seio dos camponeses, portanto, havia alianças de entreajuda, económica, para lutar pela sobrevivência no quotidiano. Nenhum pai que tivesse qualquer propriedade gostaria de entregar a sua filha a um homem que não tivesse nada. Mesmo por entre o povo, o casamento não era assim tão livre. Sim, a mulher do povo tinha mais liberdade para os seus encontros, mais furtivos, mais casuais, do que a mulher da nobreza, mas depois, ao nível da consolidação desse Amor, ao nível do casamento, a liberdade não era enorme.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Carmen Lima, autor de “Não há planeta B”

Quarta-feira, 24 de outubro, 9h30

Domingo, 28 de outubro, 14h25

 

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