Nuno Gomes Garcia conversa com Célia Correia Loureiro: “A mulher deve procurar libertar-se da violência”

Célia Correia Loureiro nasceu na cidade de Almada em 1989 e já publicou quatro romances e alguns contos. O seu primeiro romance, “Demência”, foi originalmente publicado em 2011 e acaba de ser reeditado pela Coolbooks, estando já disponível nas livrarias.

A Célia, depois de “Demência”, publicou “O funeral da nossa mãe” (2012), “A filha do Barão” (2014) e “Uma Mulher Respeitável” (2016).

Este “Demência” transporta-nos para a aldeia de Ferreiró do Dão, perto de Tondela, onde Olímpia começa a sentir os primeiros sintomas de demência. Para a ajudar a colmatar as falhas graves de memória que a impedem de levar a cabo uma vida independente, Olímpia opta então por chamar em seu auxílio a nora, Letícia. Ora, o interessante deste facto é que Letícia pouco tempo antes matou Fernando, o marido que era, claro, também o filho de Olímpia.

Letícia foi muito mal recebida pela população da aldeia, isso apesar de ter sido ilibada do crime – sabe-se que disparou a caçadeira em legítima defesa visto ter sido uma vítima recorrente de violência doméstica.

Esta principal tensão do romance – uma idosa a caminho da senilidade que recebe o auxílio da mulher que lhe matou o filho – acaba por abrir as portas à reflexão de dois dos mais graves problemas da nossa sociedade: a violência doméstica e a discriminação de género.

 

Célia, a nossa sociedade finalmente parece que começa a tomar consciência das violências, não apenas físicas, que as mulheres sofrem há milénios. O teu livro coloca o dedo na ferida e pode ter um papel importante, não só de denúncia, mas, claro, de sensibilização. Foi esse um dos teus objetivos?

O meu principal objetivo foi retirar a camada de vergonha às vítimas de violência doméstica. O livro foi lançado pela primeira vez em 2011. Eu ainda não tinha 21 anos. Era uma jovem ativista e achava que esse era um dos contributos que poderia dar. Uma coisa que me fazia muita confusão e, como sabes, é recorrente, era o facto de todos nós conhecermos ou termos conhecido alguém que é ou foi vítima de violência doméstica e nunca ninguém denunciar por não se querer meter no assunto, por considerar que era um problema do casal.

 

Sim, como é aquela expressão muito disparatada? Entre marido…

Entre marido e mulher não se mete a colher! Exatamente. Isso é algo muito enraizado na nossa sociedade. E na altura chocou-me bastante perceber que existiam muitos casos desses na minha própria rua, também nessa aldeia que eu conheço bem. Todos nós sabíamos que esses casos de violência existiam, mas havia uma espécie de recriminação da própria mulher violentada. Ou seja, atribuíam à mulher um certo de grau de culpa. Sugeriam que ela era a responsável pelo que lhe estava a acontecer. Esse era um assunto que mexia bastante comigo e eu quis explorá-lo melhor num romance.

 

E já houve mulheres, leitoras, que se aproximaram de ti e disseram “olha, Célia, eu conheço muitas Letícias”?

Sim, muitas. E também já conheci muitas Letícias. Houve uma pessoa que, na altura, me comoveu bastante. Foi a primeira vez que percebei que este livro retrata a história de muita gente. Essa senhora veio abraçar-me e disse-me “este livro é a história da minha vida”. Outra jovem, que eu sigo nas redes sociais, há pouco tempo disse-me “Célia, estou a prolongar a leitura o mais possível porque eu passei por isto tudo e a leitura está a ser uma espécie de terapia. Ver como é que tudo isto me possa ter acontecido. A culpa realmente não é minha”. A mensagem que este livro deixa é que a culpa não é da mulher. A mulher deve procurar libertar-se da violência de todos os meios possíveis.

 

Célia não é normal termos uma escritora com menos de 30 anos e já com quatro romances publicados. O mais normal é vermos escritores a publicar quando chegam aos 40, por exemplo. Tu começaste a escrever muito cedo? Conta-nos como foi?

Foi muito simples, na realidade. Eu só tive um computador aos 16 anos e não havia tantas distrações. E uma das coisas que me dava imenso prazer era ler. E a escrita veio associada à leitura. E ao ler, perguntava-me “porquê este desfecho e não outro?” E pegava naqueles personagens e virava a história toda e, às tantas, desliguei-me de todas as outras leituras e criei um universo só meu que desde então não consegui abandonar mais.

 

Essa tua experiência bate certo com a resposta que dão os escritores que dizem que para escrever é preciso começar por ler, ler muito e de tudo.

Sim, é a realidade. Isso não significa que aparece alguém que nos vá inspirar. “Gosto muito de Dan Brown, por isso vou escrever uns thrillers”… não é nada nesse sentido! É mais no sentido de tirar várias ideias, várias noções. Quanto mais variada for a Literatura, melhor, porque assim conseguimos ir buscar um bocadinho a cada uma e construirmos o nosso próprio castelo a partir daí.

 

Os teus dois últimos livros publicados são romances históricos e tratam ali os começos do século XIX. Isso também não é muito habitual, normalmente um escritor mantém-se fiel a um género. Diz-nos quais são as principais diferenças a nível de processo e qual dos géneros te dá mais gozo.

Eu sinto que nos “romances contemporâneos” podes dar muito mais foco aos personagens e à realidade do nosso tempo. Como é o caso da violência doméstica. No romance histórico, o mais importante é não pormos uma Renault 4L a atravessar Lisboa em 1850. Temos de evitar anacronismos. Temos de fazer uma pesquisa muito exaustiva, que é o que demora mais. Eu comecei pelos livros de História e, às tantas, descobri que o melhor era ler jornais. Os jornais da época, nomeadamente a “Gazeta de Lisboa”, que encontramos online, ajudam-nos a entender como é que era a mentalidade, o foco daquela sociedade. Não adianta dizer apenas “ah fomos invadidos pelas tropas do Napoleão”. O que diziam os jornais? Os jornais diziam que o povo estava a retaliar com o que lhe vinha à mão, fossem pedras, fossem paus… e eu achei isso muito mais interessante do que ler que ele avançou até não sei onde no dia tal. Devemos procurar os vários ângulos do mesmo episódio.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Catarina Barreira de Sousa, autora de “Alice no País de Gil Vicente”

Quarta-feira, 01 de maio, 9h30

Domingo, 05 de maio, 14h25

 

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