Home Cultura Nuno Gomes Garcia conversa com João Nuno Azambuja: “Já não saímos à rua sem sermos vigiados por câmaras”Nuno Gomes Garcia·11 Novembro, 2019Cultura “Autópsia”, de João Nuno Azambuja, é uma distopia que nos conduz ao fim do mundo. Se hoje as inevitáveis consequências das alterações climáticas nos surgem ainda como algo distante no tempo – estado mental que nos conduz, no melhor dos casos, a uma sensação de não urgência ou, na pior das abordagens, a uma doutrina negacionista visando transformar as evidências científicas numa espécie de teoria da conspiração perpetrada por milhares de cientistas loucos e catastrofistas – neste novo romance do escritor bracarense, as consequências das alterações climáticas são uma realidade de todos os dias. Neste livro, o nosso mundo é um outro. Um mundo em que o oceano engoliu os continentes, deixando emersas apenas algumas pequenas ilhas. É uma dessas ilhas que dá o título ao romance. Autópsia é uma ilha de 220 Km2 (mais ou menos duas vezes a superfície da cidade de Paris), outrora parte do Tirol Oriental austríaco, e onde habitam 11 milhões de pessoas. A esmagadora maioria dos sete mil milhões de seres humanos de outrora não sobreviveu ao cataclismo que destruiu a nossa civilização. Como se não chegasse toda essa falta de espaço, a poluição e a corrupção moral, uma parte ilha de Autópsia começa a aluir, evento que traz consigo um segundo fim do mundo, embora em microescala. Enquanto uns habitantes de Autópsia se entregam ao desespero, outros deixam-se alienar por drogas. Um dia, porém, vindo de uma outra ilha existindo longe das convulsões que atingem Autópsia, surge um estrangeiro que parece trazer com ele a luz da esperança. João Nuno, existem exemplos em que as distopias se tornam, passadas umas décadas, em algo muito parecido com a realidade. Lembro-me por exemplo das omnipresentes teletelas, objeto de vigilância que o Orwell inventou para o romance “1984” e que hoje cada um de nós carrega voluntariamente no bolso sob a forma de telemóveis. Achas que as distopias podem servir de alerta para certos caminhos errados que a humanidade está a seguir? Claro que sim. Essa distopia que referiste, talvez a mais conhecida, o “1984”, trata precisamente disso. É um alerta em relação a um Governo que controla a sociedade. Eu acredito que tenha sido um aviso porque nós caminhamos para esse controlo social por parte do poder. Mesmo que não tenhamos a noção imediata, nós somos controlados de muitas maneiras. Já não saímos à rua sem sermos vigiados por câmaras, com os telemóveis no bolso, como tu disseste, sabe-se sempre onde estamos, tal como acontece com um levantamento multibanco. Através do uso que damos ao cartão bancário sabe-se os livros que compramos e que lemos, a comida que comemos… Isso tanto pode dar para o controlo de comportamentos “subversivos” como para apurar e orientar a publicidade ao meu consumo específico. Exatamente, e por isso mesmo, nós temos de ter consciência que isto é uma consequência da sociedade moderna e deste planeta que já está a ficar sobrepovoado. Portanto, nós, para termos segurança, entregamos parte da nossa liberdade. É a condição. Dantes, nas cidades, tinham de ser muralhadas, com portas fechadas, para se protegerem das invasões. Agora, existem outras maneiras de fechar as portas, de não sairmos da nossa comunidade, que é precisamente este controlo social que nós vamos aceitando, apesar de não o devermos fazer. Este livro conduz-nos ao fim do mundo, a um planeta totalmente diferente na sua fisionomia. E nós, na realidade poderemos estar a caminhar para esse tipo de mundo devido às alterações climáticas: o degelo nos polos, a subida da água dos mares, o aquecimento global… Bem, a Terra pode também na vida real ser geograficamente redesenhada. Ora, a minha pergunta é esta: o que te passa pela cabeça quando ouves afirmações de certos políticos, em alguns casos Chefes de Estado, em que relativizam ou negam o facto de a ação humana contribuir para as alterações climáticas? É preocupante. Eles dizem que as evidências científicas não são absolutamente certas, mas nunca nenhuma evidência foi absolutamente certa. Os estudos sérios realizados pelos melhores cientistas… Estamos a falar de milhares de estudos e de milhares de cientistas oriundos de todo o mundo. Sim, a esmagadora maioria da comunidade científica diz que as alterações climáticas estão a ser provocadas pela ação humana. Negar isto, é como negar o Holocausto. Não há nenhuma base lógica para o negar. E o facto de Chefes de Estado negarem esse facto e apresentarem outros argumentos sem qualquer base lógica, como o caso do Brasil, por exemplo. Alguns responsáveis políticos brasileiros quando a Amazónia estava a arder há uns meses, não quer dizer que nunca tivesse ardido, mas naquele momento estava a arder, vieram então dizer que o ar que nós respiramos não é produzido pela floresta, que é produzido pelos oceanos. Só que essas pessoas esquecem-se do estado em que estão os oceanos, a serem engolidos pelo lixo desta humanidade que também destrói a floresta. Se eles pensam segundo esta lógica – o ar não vem daqui, vem dali -, nós ficamos sem a floresta, porque eles querem continuar a explorá-la, e ao mesmo tempo ficamos sem o mar por causa da ação humana. Eles julgam-se no direito de explorar as florestas. Os outros países fizeram o mesmo na altura da revolução industrial, e por isso eles acham que têm o direito. Só que, infelizmente, hoje as condições são diferentes e já não podemos abusar. Sobre o teu livro, o que chama logo a atenção, é o nome da ilha que dá o título ao livro. Por que razão escolheste o nome de Autópsia? Já não me lembro do momento em que escolhi esse nome, mas lembro-me perfeitamente da razão. Nós ligamos sempre a ideia de autópsia à análise de um corpo humano morto e a verdade é que a palavra vem do grego e significa “vermo-nos a nós próprios”. Neste caso a ilha de Autópsia está perante um problema gravíssimo que representa a aniquilação. E o que é que se vai fazer? Vão tentar resolvê-lo? Ou vão fazer como os negacionistas e embrenharem-se noutros assuntos, em jogos de poder? Este livro é uma análise a nós mesmos, ver como nos comportamos, e foi por isso que escolhi esse nome. Talvez possas dar algumas pistas a quem nos ouve. Que cataclismo foi aquele passível de transformar a Terra num planeta-oceano com apenas duas pequenas ilhas à superfície? Toda a crosta terrestre se afundou no oceano, com a exceção de um fragmento da Áustria, que é a ilha de Autópsia, e um fragmento da Irlanda, muito maior. Só que este último fragmento deslocou-se no oceano porque a placa eurasiática se movimentou durante o cataclismo. O enredo do livro vai girar à volta do facto de alguns personagens irem em busca dessa nova ilha para se salvarem, embora não saibam que esse fragmento da Irlanda se movimentou e está noutro local. Isto tudo, no fundo, é uma parábola com base naquilo que nós enfrentamos devido às alterações climáticas que levam à subida dos mares e ao encolhimento das zonas costeiras. No futuro de certeza que vamos ter maior consciência disso. Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris Próximo convidado: Paulo M. Morais, autor de “Pratas Conquistador” Quarta-feira, 13 de novembro, 9h30 Domingo, 17 de novembro, 14h25 [pro_ad_display_adzone id=”2724″]