Nuno Gomes Garcia conversa com Marine Antunes: “O cancro deu-me mais energia”

“Teorias de uma not atinadinha” é o terceiro livro de Marine Antunes. A aventura literária de Marine – nascida em França há 29 anos e a viver em Portugal desde os dois – começou da pior maneira. Ainda muito jovem, aos 13 anos, ela sobreviveu a um linfoma e, mais tarde, em 2013, fruto dessa experiência, decidiu dedicar a sua vida à desmistificação da doença. Iniciou então um blogue e daí nasceu o seu primeiro livro “Cancro com Humor”.

A partir desse momento, a sua vida mudou radicalmente. Marine Antunes, graças ao humor com que relativiza uma das doenças que, apesar dos quase inacreditáveis avanços da medicina, ainda mata milhões de pessoas em todo o mundo, e graças, claro, à sua vitória sobre o cancro, ela passou a ser um exemplo positivo para as pessoas atingidas por esta doença. A sua abordagem ligeira e descomplexada serve de inspiração e de auxílio às crianças e aos adolescentes que com ela contactam.

Marine Antunes, licenciada em Comunicação Social, realiza então palestras motivacionais que enfatizam a valorização pessoal, o humor na saúde e, diz, “a capacidade de sermos felizes independentemente do que estamos a viver”.

Ela também escreve para vários meios de comunicação e, em 2017, apresentou o seu segundo livro – “Cancro com Humor 2” – um pouco por todo o país, viajando de forma muito original.

 

Afinal que meio de transporte foi esse, Marine, o que utilizaste durante a apresentação do “Cancro com Humor 2”?

Sabes que o projeto “Cancro com Humor” vive da minha experiência pessoal e aquilo que eu tento fazer é mostrar que através da criatividade, da escrita, da oralidade, das palestras, nós podemos ser felizes em qualquer contexto. Então eu decidi que o segundo livro iria ser apresentado de norte a sul do país através de uma “pão de forma”… Estás a ver como são aquelas carrinhas muito antigas?

 

Sim, as Volkswagen dos hippies, as Combi.

Sim! Foi muito divertido. Aquilo não dava mais de 90 km por hora, acho que nunca ultrapassámos ninguém na autoestrada.

 

E tinha flores pintadas na carroçaria como nos anos 70?

Não! Tinha o logotipo do “Cancro com Humor” e estava linda, linda. O que eu queria era de facto esta proximidade. Este livro é um testemunho. É a minha história. É algo muito íntimo. Eu queria ir a todo o lado, estar com as pessoas de uma forma a mais íntima possível. E foi muito divertido, nós chegarmos com a carrinha e com os livros. Dormíamos na carrinha… foi maravilhoso!

 

Fala-nos então deste projeto “Se podes sonhar, podes concretizar”. Este livro nasce desse projeto?

O “Teorias de uma not atinadinha” nasce do projeto “Se podes sonhar, podes concretizar” que eu tenho com o meu namorado, que é ator e que fez uma personagem muito icónica aqui em Portugal nos “Morangos com Açúcar”. Ele fazia a personagem cómica do Crómio. Lembras-te?

 

Eu não me lembro, não. Não seguia…

O Crómio era uma personagem maravilhosa, particular, que tinha muito sentido de humor, muito bonita, mas que sofria de bullying por ser uma personagem diferente. Então, nós aproveitamos e contamos a nossa história numa palestra motivacional, eu e o Tiago, onde falamos sobre preconceito, bullying, estigma. Falamos desta personagem que os miúdos adoram e reconhecem. Também para eles perceberem que o facto de sermos diferentes ainda nos torna mais especiais. Eu conto a minha história de cancro, de superação. Só que tudo adaptado aos mais novos. Conto algumas histórias de quando sofri de bullying… eu tinha 13 anos e ia para a escola. E, como deves calcular, isto de aos 13 anos estares na escola e não teres cabelo não é propriamente muito fácil. Bem, estas palestras são maravilhosas porque nós falamos de muitas coisas: de superação, de autoestima… E tem corrido tudo muito bem. Nós vamos a todo o lado. Colégios, escolas, somos convidados por câmaras. Nós, em três meses, estivemos com mais de seis mil jovens.

 

Conta-nos, Marine, em que sentido é que os ensinamentos que recolheste nessa altura, aos 13 anos, podem ajudar aqueles que padecem hoje dessa doença.

Olha, eu acho que tive sempre uma forma muito particular de lidar com esta doença. Exatamente com o tal humor e com a capacidade de perceber que, independentemente de estarmos doentes, nós podemos ser nós próprios e podemos ser felizes. E não temos de ser vítimas. Podemos, pelo contrário, ser uma inspiração. Eu lembro-me perfeitamente de pensar: “um dia, quando olhar para trás, não quero apenas ter más recordações deste momento. Eu quero ter boas recordações.” E aproveitei a minha vida ao máximo nessa fase. Hoje em dia, tenho a certeza que o facto de ter tantos projetos, de fazer tantas coisas novas, de não ter medo de arriscar, tem muito a ver com isso. Eu costumo dizer, a brincar, que andei na “Cancer School”. Parece que andei a estudar lá fora, em Londres! De facto, este mundo do cancro ensina-nos muita coisa. E se eu já era uma miúda grata, hoje sou grata ao quadrado. Quando eu era pequenina já dizia “eu quero ser escritor”… É pá, porque é que eu não hei de ser escritor? O que é que me impede? E, ao invés de me tirar energia, o cancro deu-me mais energia. É tudo uma questão de perspetiva. Há uma frase que não é minha e que diz assim: “Quem toca na morte faz escolhas melhores”.

 

Era isso mesmo que te queria perguntar. Claro que os tratamentos oncológicos evoluíram e fizeram diminuir imenso a taxa de mortalidade. Todavia, quem tem essa doença aproxima-se da morte. A morte é uma ideia que está sempre presente. Tu achas, portanto, que esta proximidade ajuda a relativizar a importância dos problemas comezinhos que vamos tendo na vida. É isso?

Eu não tenho dúvidas nenhumas. Eu perdi muitas pessoas próximas para o cancro. E então com o projeto “Cancro com Humor”, eu já nem te consigo dizer quantos pessoas perdi para a doença. O meu cancro tinha 11 cm e estava a 1 mm do coração. Nós não tivemos tempo para nada, foi tudo muito rápido. E, de facto, eu aproximei-me da morte, não só por causa do meu cancro, mas também porque as minhas companheiras, as colegas de quarto, as pessoas íntimas, acabaram, muitas delas, por falecer de cancro. E isso faz com que seja inevitável olhares para a tua vida e penses “ok, eu tenho duas hipóteses. Ou aproveito a vida e sou feliz com o tempo que tenho, ou lamento esta grande tragédia e vivo a minha vida de uma forma com a qual não me identifico”. Para mim foi óbvio pensar, não só por mim, mas também pelos outros, pensar “eu tenho de dar o melhor de mim”. A verdade é exatamente aquilo que tu disseste: nós temos de desmistificar, temos de falar desta doença e não ter medo dela porque a taxa de sobrevivência é cada vez maior… e sem dúvida que a cabeça conta muito. Quanto mais negativos formos, pior. Se estivermos deprimidos, vamos perder o apetite, perdendo o apetite, não podemos fazer os tratamentos… Bem, é tudo uma bola de neve. É mesmo importante estarmos felizes e pensarmos “é pá, isto não será a pior coisa da minha vida!” E não foi. Depois tirei carta de condução e isso é que foi uma tragédia.

 

Marine, os pais que hoje andam ali à volta dos 30 ou 40 anos, por culpa de uma vida cada vez mais rápida, as horas passadas nos transportes, pai e mãe a trabalharem, os dois, imensas horas… bem, aquilo que nós sabemos. Há quem diga, portanto, que existe um certo défice de acompanhamento por parte de certos pais. Sentes que este livro, pelas temáticas que aborda, o bullying, por exemplo, pode de certa forma compensar esse défice?

Olha, eu sou muito suspeita por falar bem deste livro, mas eu gosto muito dele. Mas vou explicar o título, “Teorias de uma not atinadinha”. Nós, às vezes, somos atinadinhos e outras não. Não existe uma fórmula para isto de sermos adolescente. Passamos por bons e por maus momentos. Eu acho que este livro é uma excelente companhia e a verdade é que tem tido um feedback muito positivo dos adolescentes. É todo escrito com muito humor e quando abordo temas como a autoestima, o preconceito, o primeiro namoro… bem, no fundo, a mensagem é “crescer custa a toda a gente”.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Afonso Reis Cabral, autor de “Pão de Açúcar”

Quarta-feira, 19 de junho, 9h30

Domingo, 23 de junho, 14h25

 

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LusoJornal