Nuno Gomes Garcia conversa com Paulo Pinto: “É preciso compreender os homens das diferentes épocas, a sua mentalidade”

“Os Dias da História”, livro da autoria do historiador Paulo Jorge de Sousa Pinto começa no dia 1 de janeiro de 1959 e termina a 31 de dezembro do ano 406, permitindo ao leitor percorrer 365 episódios essenciais da História de Portugal e do mundo, dia após dia, através de todos os continentes.

É desta forma que Paulo Jorge de Sousa Pinto, um historiador que não aprecia efemérides, se tornou um divulgador de… efemérides na rádio Antena 2, onde foi autor de um programa com o mesmo nome deste livro. Foram então mais de 500 curtos episódios de quatro minutos que, entre 2016 e 2018, conduziram os ouvintes tanto à primeira exibição do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, como à execução de Marie Antoinette em 1793 ou à travessia do rio Reno pelas tribos germânicas que, a prazo, levaria à queda do império romano.

Este livro, escrito por um especialista, mestre em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, é, portanto, um bom herdeiro do programa de rádio e cujas 400 páginas serão capazes de encher as medidas dos todos os amantes de História.

 

Paulo, o livro relata 365 episódios. Nunca aconteceu nada de relevante num 29 de fevereiro?

É verdade. Essa foi uma das minhas opções quando me dediquei à escrita do livro. Eu ainda procurei por uma efeméride que tivesse acontecido nesse dia, mas, isto com todo o respeito pelas pessoas que nasceram nesse dia, o dia 29 de fevereiro é apenas uma correção de uma pequena irregularidade astronómica. E, por isso, achei que seria forçado meter ali um programa um pouco à pressão. E depois, na rádio, isso daria 366 episódios e o ano normalmente tem 365 dias. Como o livro é baseado no programa de rádio da Antena 2 que foi emitido entre 2016 e 2018, e, se bem me lembro, não se apanhou ali nenhum ano bissexto.

 

Já está explicada a ausência do 29 de fevereiro! Paulo, diga-nos lá como é que um historiador que não aprecia efemérides acabou a escrever um livro como este?

Eu próprio fiquei surpreendido. Foi um desafio lançado pelo Diretor da Antena 2, o João Almeida. Vários anos antes, fui ao programa dele falar de um livro que escrevi e, depois, em conversa, sugeri um modelo de programa que ela acabou por não concordar por ser muito complicado e, em resposta, disse-me “então, Paulo, e se fizéssemos algo mais simples, um programa sobre efemérides?” Eu não fiquei nada entusiasmado porque sempre tive aquela ideia, que até pode ser preconceito meu, de historiador, de que a efeméride é a pele mais superficial da História, é aquilo a que as pessoas se agarram, apenas uma curiosidade para encher tempo e sempre apresentada sem nenhuma profundidade. Enfim, acabei por aceitar com algumas reservas e tentei, eu próprio, dentro dos limites que me eram dados e em quatro minutos, tornar aquilo ao mesmo tempo interessante para o público em geral e dar alguma profundidade, não ficar pela mera piadinha ou a mera curiosidade histórica que se esquece logo. Na rádio é mais fácil porque se pode moldar esses materiais com a entoação da voz. No livro é mais difícil porque tive de condensar tudo isto, um dia, um episódio, numa página. Condensar tudo, com cabeça, tronco e membros, em três parágrafos.

 

O que não é nada fácil. Falemos um pouco da atualidade. O Paulo trabalha bastante com os séculos XV e XVI, a época dos “Descobrimentos”. Eu passei a notar que existe agora um nervoso miudinho sempre que se fala nesse período e se aborda temas inevitáveis como a escravatura, os primórdios da presença europeia em África ou na América. Ora, nós vivemos um tempo em que, com ou sem razão, não vamos debater isso aqui, se derruba estátuas do Colombo ou se picha estátuas do padre António Vieira. Porém, é tudo tão complexo, a História é tão complexa. Como é, hoje, ser professor de História e ter de enquadrar, contextualizar tudo isso?

Algo está a mudar e, na minha opinião pessoal, ainda bem que está a mudar. Eu já não sou muito jovem, tenho mais de 50 anos, e lembro-me bem que quando aprendi essas matérias, esses assuntos nem sequer constavam nos livros. Nem sequer se mencionavam. Havia ali um manto de silêncio. E a situação particular de Portugal, antes do 25 de Abril, o passado colonial, e mesmo até aos anos 70 e 80, gerou sempre um silêncio. Essas questões são políticas, entre a Esquerda e a Direita, para uns fomos uns criminosos e para outros uns heróis. E durante muito tempo isso foi uma mancha cinzenta. Ultimamente, essas questões emergiram na opinião pública e eu acho que em si é bom. Essas questões devem ser debatidas e discutidas. Por vezes, com muita paixão e muitos disparates à mistura. Mas, no final, algo de bom vai emergir de tudo isto. Tudo é preferível ao silêncio. Agora, vivemos um tempo novo e isto coloca novos desafios. Há questões sensíveis que devem ser ensinadas, enquadradas, com alguma lucidez, bom senso. Eu sou muito otimista e acho que se as coisas forem devidamente explicadas, contextualizadas historicamente, tendo algum cuidado com a adjetivação, penso que as pessoas compreenderão e não haverá necessidade de criar novos vilões ou de se estar sempre a adorar os velhos heróis. Há um meio-termo, é preciso compreender os homens das diferentes épocas, a sua mentalidade. Creio que esse debate a médio-prazo irá dar bons resultados. Nesta fase, nós ainda estamos muito nas paixões. Alguns julgam que se está a atacar o nosso passado, a nossa tradição, os nossos heróis; e depois há os outros que só falam da escravatura, que pintam tudo com cores muito negras. Com o tempo, julgo que se chegará a uma visão mais equilibrada da História.

 

E, Paulo, como é que os “Outros” viram a presença portuguesa nas suas terras? Vamos fazer um pouco como o Maalouf nas “Cruzadas vistas pelos Árabes”. Como é que, hoje, os povos africanos e asiáticos olham para essa nossa História comum?

Essa é, como dizem os Americanos, a ‘million dollars question’. É uma questão riquíssima e muito interessante. Como é que “Eles” nos veem hoje e como é que “Eles” nos viam na altura. São duas questões diferentes. Ah, e também como é que “Nós” vemos a forma como “Eles” nos veem. Há aqui um jogo de espelhos e isso é um exercício muito apaixonante, muito rico e diverso. Evidentemente que a forma como nos veem e nos viam tem que ver com aspetos culturais, com diferenças fisionómicas, com as roupas, mas também com aspetos sociais, políticos, ligados com a forma como os Portugueses se comportavam, comerciavam, dominavam ou não dominavam. Enfim, uma multiplicidade de aspetos. Hoje em dia, no nosso presente, é também igualmente muito interessante porque tem que ver com a imagem que os próprios povos fazem do seu passado. E, portanto, quando esse passado é carregado de negro, cinza, de questões trágicas como a escravatura e o tráfico de escravos em África aos quais, isso é evidente, os Portugueses estão associados. Na Ásia é mais complexo. Os Portugueses estão normalmente associados a Comunidades portuguesas que acabaram por lá ficar. Muitas pessoas possuem apelidos portugueses e dizem que são Portugueses. Na Tailândia, na Malásia, em Malaca, por exemplo, essas pessoas olham para esse passado como uma espécie de passado romântico que é irreal, porque não existiu, faz parte da sua própria mitologia. E nós, Portugueses, quando visitamos essas paragens remotas da Ásia e encontramos esses vestígios ficamos muito contentes por alguém ainda ter memória dos Portugueses lá. Isso é muito mais complexo do que parece. A mim faz-me alguma impressão ver, por exemplo, alguns jornalistas, pessoas que escrevem peças sobre os Portugueses de Malaca, sobre os cristãos da Indonésia, como eles olham para aquilo muito embevecidos e se esquecem que aquilo é já uma construção feita pelos próprios povos daquela região sobre um passado que também é deles. Existem, claro, diferentes tonalidades, umas mais carregadas e outras mais lisonjeiras. O que se passa no sudeste asiático, em Macau, na Indonésia, é mais agradável do que aquilo que se passa na Índia, onde ainda se tem a memória muito viva de que os Portugueses foram aqueles que abriram as portas ao colonialismo britânico. Há uma espécie de rancor relacionado com o facto de o Vasco da Gama ter sido aquele que abriu as portas à colonização europeia.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: João J. A. Madeira, autor de “Senha Número Trinta e Quatro”

Quarta-feira, 30 de setembro, 9h30

Domingo, 04 de outubro, 14h25

 

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