Opinião: A clivagem Esquerda/Direita: uma história tão francesa como portuguesa


A distinção política entre Esquerda e Direita tem as suas origens em França, no século XVIII, no início do período da Revolução Francesa (1789-1799). O hemiciclo da Assembleia Nacional apresentava uma disposição em que do lado direito de quem presidia à sessão se sentavam os monárquicos conservadores e absolutistas e do lado esquerdo tinham assento os republicanos reformistas e seculares. Com mais ou menos nuances, esta oposição simbólica nascida em Versalhes e Paris viria a marcar a política mundial para a posteridade.

Na mesma França, cerca de 2 séculos mais tarde, há dois protagonistas políticos que querem enterrar esta dualidade histórica. Para os seus próprios fins eleitorais, instituíram uma nova dicotomia: a dos globalistas ou progressistas contra nacionalistas ou patriotas.

Mal sabia Jean-Marie Le Pen, quando fundou o Front National (agora RN), que a sua sucessora na liderança do partido iria renunciar à sua definição como sendo de Direita, para não alienar eleitores patriotas das classes populares e da França industrial e rural. Com o passar do tempo, Marine Le Pen – assim como, mais tarde, Jordan Bardella – deixou de centrar o seu discurso nas querelas de imigração e de identidade nacional, para se focar nas temáticas sociais e do poder de compra, que tanto preocupam o eleitorado col bleu (“blue-collar”). A ironia das ironias, é que esta conceção socioeconómica colocou-a perigosamente perto da extrema-esquerda francesa, com quem converge nos ideais protecionistas, no euroceticismo e na rejeição de uma suposta agenda de globalização financeira e capitalismo selvagem. No entanto, há que reconhecer que esta foi uma aposta ganha, permitindo ao RN consolidar o seu eleitorado de base, à medida que foi conquistando o voto da classe média e dos jovens, afetados pela crise inflacionária e inundados por um sentimento anti-establishment, até se tornar o partido mais votado de França.

Igualmente astuto foi Emmanuel Macron, que conseguiu captar o eleitorado moderado francês, tanto de centro-direita como de centro-esquerda, através de outra proposta ideológica híbrida. Do seu legado de centrismo liberal, ficará para a história o aumento da idade legal da reforma, a abertura do capital de empresas de referência a consórcios e investidores estrangeiros (incluindo, dos tempos de Hollande, os polémicos casos Alcatel/Nokia e Alstom/GE) e várias reformas business friendly (fiscais, laborais, etc) de Direita; mas também a expansão do Estado-providência redistributivo, os ideais progressistas em matérias de sociedade (como género ou sexualidade) e uma política de imigração aberta e facilitadora, como é apanágio da Esquerda. A lista de zigue-zagues poderia continuar. É também prova do seu pragmatismo descomplexado o ter convidado para postos-chave dos seus Executivos ex-republicanos e ex-socialistas, como Édouard Philippe, Gérald Darmanin, Bruno Le Maire e Olivier Véran, Stanislas Guerini ou Pap Ndiaye. Não foi coincidência nenhuma esta estratégia de esvaziar os quadros dos dois grandes partidos moderados de França, bem como o eleitorado de cada um, o ter permitido deixar o lugar de destaque na oposição para as forças extremistas (RN e LFI), uma ameaça conjugada fácil de derrotar em escrutínios a duas voltas, como é a regra em França.

No entanto, muito se fala num possível regresso da clivagem Esquerda/Direita a uma França pós-Macron, considerando que a atual composição do panorama político francês mais não foi do que uma idiossincrasia temporária. Afinal de contas, como se viu em eleições recentes, com o recuo da ‘Macronia’, tanto socialistas como republicanos parecem recuperar terreno com facilidade.

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Curiosamente, também em Portugal, a filosofia política da direita populista (Chega) e de liberais (IL) desafia crescentemente esta dicotomia. O Chega considera-se como um partido de Direita, mas receia alienar eleitorado conquistado que historicamente votava à Esquerda. Por isso, acolheu fanaticamente como clientelas políticas diversas classes e profissões (polícias, forças armadas, bombeiros, professores, agricultores), defende aumentos de pensões sem margem orçamental e tem um histórico de votação parlamentar a favor de injeções de capitais exorbitantes no setor empresarial do Estado.

Por sua vez, a IL rejeita a designação de Direita, considerando-se “liberal em toda a linha”. Mas com isto constituiu um partido repleto de fações e oposições internas (veja-se a debandada recente da ala de Direita, encabeçada por Nuno Simões de Melo, para o Chega ou o dissidente Partido Liberal Social liderado por José Cardoso) e um perpétuo afastamento de votantes de Direita (horrorizados com a visão, em costumes, semelhante à do BE, com posições geralmente favoráveis à autodeterminação da identidade de género na escola, à regularização da prostituição, à legalização das drogas leves, à liberalização da morte medicamente assistida ou à interrupção voluntária da gravidez) e de Esquerda (petrificados com o liberalismo económico intransigente, que criticam por só conhecer as palavras “privatizar e despedir”). Talvez por isso – voltando à distribuição de assentos na Casa da Democracia -, durante a liderança de João Cotrim de Figueiredo, a IL desencadeou um processo formal para tentar mover o seu grupo parlamentar para a bancada à esquerda do PSD, colocando-se simbolicamente no centro do hemiciclo – pretensão categoricamente rejeitada por Rui Rio, cujo lema de campanha era… “Governar Portugal ao centro”.

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João Cruz Ferreira

Funcionário da UE destacado em Paris

Autor de “A França a olho nu”

LusoJornal