Opinião: Aquela Quintinha que nos esperavaManuel Maia Teixeira·Opinião·25 Agosto, 2025 Num dos meus relatos passados, contei as razões que empurraram o meu pai para a emigração. Essa Quinta da Barroca, que ele teve de abandonar, nunca mais daria o seu vinho, nem deixaria cair às suas mãos pacientes os cachos pesados de sol. Nunca mais lhe daria a seiva da terra, nem aquela fadiga nobre que ele tanto prezava, porque cansar-se no campo era para ele um ato de amor. Tudo se quebrou por causa de uma negociação falhada com o proprietário, uma desavença na partilha do vinho. E, a partir desse dia, uma vida nova, aventureira, impôs-se: longe das raízes, longe do cheiro da terra molhada depois da chuva, longe da sombra das videiras no verão. E, no entanto, quando casou com a minha mãe, prometera-lhe poupá-la à terra, essa terra dura que ela tantas vezes pisara, descalça, sob o sol abrasador ou a geada fria, no vento agreste e no pó, sob o nevoeiro cerrado ou com a chuva miudinha que entranha na pele. Começaram a vida de casal, eu ainda para ser desejado, juntos numa pequena mercearia, onde o som das moedas era raro e o lápis riscava mais fiados do que vendas certas. As dívidas dos fregueses cresciam, como erva daninha. O meu pai acabou por desistir daquele percurso de comerciante. Mudou então de rumo, voltando ao mundo que conhecia com as mãos: o campo. Trouxe a minha mãe de novo para as leivas abertas, para o verde tenro das sementeiras, para as ceifas que estoiravam corpos e para as festas de fim de colheita, quando a vindima era o clímax do ano, a recompensa do suor, a alegria durante o dia, os cantos até tarde na noite. Mas, oito anos depois, tudo ruiu outra vez. Ficou-lhes um pecúlio surpreendente, escondido na corte dos porcos, dinheiro suficiente para erguer a casa da nossa família, já com quatro filhos, paga em escudos, antes dessa grande partida que haveria de mudar os nossos hábitos a todos. Foi então a nossa travessia para França. O meu pai, que fora dono das suas horas, único responsável de suas decisões, tornou-se um simples operário, sujeito à apreciação do chefe e à disciplina do horário. Aprendeu à pressa, com o meu tio Justino, como um homem de força, de paciência, os segredos para ser trolha. E com esse saber de recurso entrou numa empresa francesa, a Dalla Bâtiment, que levantava bairros sociais no vale mineiro de Montceau e Le Creusot, obras de utilidade pública para alojar gente empregada na exploração do carvão, na indústria pesada da siderurgia. O meu pai não sabia ler uma planta, nem queria saber delas. Trabalhava de ouvido, guiado pela voz do capataz, meio em português, meio em francês, salpicada de italiano. Lutou sempre por aumentar o seu salário, mas o corpo, o destino, tudo lhe punha travões. Ficou no modesto degrau da hierarquia embora conseguiu vestir o capacete azul, mais do que servente, menos do que mestre. Conquistou-o pela autonomia nos acabamentos das caves e garagens dos prédios que iam nascendo no parque residencial do Plessis, nas margens dum lindo lago, ainda dentro de Montceau-les-Mines. Mas nunca amou aquele trabalho. Sabia-lhe os limites: o gelo que fende mãos, o sol que queima a pele, a incerteza do amanhã. O salário baixo que só engordava à custa de horas a fio, pagas à socapa para fugir às contribuições que, naquele tempo, eram de nível aceitável. Foi então que, no seu silêncio, lhe nasceu a ideia do regresso. Não contou nada à minha mãe, nem a nós, os filhos. O sonho dele era simples e imenso: voltar à terra. Para isso, poupou com unhas e dentes, até dar a todos a ilusão do que nossa família era pobre. Cada franco guardado era uma promessa de regresso, era uma videira sonhada, uma parede de granito a erguer. E esteve tão perto… Eu tinha dezanove anos quando soube da negociação secreta. O meu tio Manuel, irmão mais velho da minha mãe, homem que conhecia a personalidade do meu pai, chamou-me à parte, um dia de agosto, depois de um almoço em sua casa. Queria sondar-me, saber se eu alinhava nesse sonho que meu pai sempre lhe confessou. Mas eu ainda era menor, a maioridade chegava aos vinte e um anos e eu devia obediência cega a meu pai. – “O rapaz ainda é muito novo para se meter na minha vida”. Assim o imagino eu dizer ao meu tio pouco tempo antes… A propriedade era nos Agrelos, perto da grande e famosa Quinta do Paço, uma propriedade luxosa a dois quilómetros da Lixa. Pertencia a uma tia do meu pai, irmã da minha avó Cândida. Terra boa, vinha promissora. Vendia-se por 350 mil escudos, quase uma miséria, fruto do êxodo para França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça. Mas o meu pai sempre teve medo do risco financeiro. Fazia mil contas antes de gastar um escudo ou um franco. Podia levantar o mundo enquanto não fosse preciso comprar a máquina para o realizar. Eu, confesso, recusei alinhar com esse projeto do regresso. Não queria voltar. Ele, talvez ferido pela minha resistência manifestada apenas perante o meu tio, a minha deserção ao combate, calou-se para sempre. E aquele sonho morreu sem grito, no segredo do coração. À minha mãe, anos mais tarde, atirou-lhe aquelas repetidas palavras duras, como quem não perdoa a falta de fé no impossível e o pouco apoio por ela manifestado. Veio então a implantação da Michelin nesta nossa província da Bourgogne. Blanzy ganhou uma fábrica nova para pneus de máquinas gigantes. Mil e oitocentos lugares! Primeiro os mineiros em fase de reconversão com a mina em vias de redução de atividade, depois os funcionários da indústria diversa. Para os trabalhos mais duros, foram buscar pedreiros, agricultores, apenas evitaram os bandidos. O meu pai agarrou-se à oportunidade. Entrou na Michelin em 1972. Turnos impostos com os “três-oito” sem descanso. Uma guilhotina de borracha que pedia força e reflexos, dia após dia. Via-o chegar, alquebrado, com o cheiro da borracha colado à pele, cheiro que lhe roubava a fome e o deitava na cama como pedra. Trabalho penoso, mas certo. Salário melhorado com prémios de trabalho noturno e a penosidade reconhecida. Aguentou dez anos. Até que, em 1982, a primeira reestruturação daquela empresa lhe trouxe a pré-reforma: 56 anos, salário assegurado até aos 65. Nove anos depois, veio a reforma inteira. Em França, o meu pai teria uma vida modesta; em Portugal, uma vida folga. Assim que assinou os papéis de aceitação, fez as malas e voltou, só com a minha mãe, deixando filhos e netos. Voltava no Natal, regressava em janeiro. Até esses regressos encolheram. A saudade do lá de baixo puxava-o sempre para o lado do sol poente. E nós tínhamos cá a nossa vida, os nossos trabalhos, as nossas paixões… Até que a doença chegou sem aviso. Um cancro do sangue, que ele escondeu de todos, até da minha mãe, impondo silêncio ao médico. Se fosse tratado cedo, teria vivido mais alguns anos. Mas preferiu entregar-se a Deus, que o levou para aquele tal repouso eterno com oitenta e dois anos. Dois anos antes da sua partida – lembro-me bem – subiu connosco ao monte de Santa Quitéria, na sua terra de Felgueiras. Deixou-nos para trás, a mim e ao meu irmão, vaidoso por nos mostrar que ainda tinha perna e fôlego. – “Meus caralhos, então pensavam que eu já estava velho”? Agora penso: talvez fosse a sua última vitória sobre o tempo. . Manuel Maia Teixeira