Lusa | António Pedro Santos

Opinião: as pessoas falam sempre da mesma coisa

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O tempo não está para sorrisos. Nas ruas, os namorados não se beijam com a facilidade com que o faziam, mas estreitam as mãos e isso os liga e tranquiliza.

Os dias passam mornos e húmidos, salpicados de sol e de aguaceiros rápidos. A cidade está escorregadia debaixo dos pés e nos olhos de quem a vê fugir até ao rio, o rio que se adivinha na luz e nos gritos das gaivotas mesmo antes de se dar a ver, em prata baça e riscada. As pessoas vão de hábitos escuros, de mau corte, umas saindo e entrando silenciosas do túneis do metro, outras descendo dos autocarros lentos, outras ainda sentadas em esplanadas quase desertas, olhando os seus sóbrios cafés, desenhando, no vento que se insinua, os seus cigarros, entusiasmando-se, enfim, com os pequenos écrans dos telemóveis.

Quem nos atende não nos saúda, mas isso não é obrigatoriamente falta de educação, é uma cultura de reserva. E nem se veriam os sorrisos de ninguém porque estão escondidos, mas certamente que também os não haveria. Porque as pessoas falam pesadamente sempre da mesma coisa, do vírus, das horas ou dos dias de recolhimento e, realmente, apenas a política do futebol lhes interessa. Os sucessos dos EUA, os atentados em França, ficam pendurados nos cabeçalhos e escondidos nos comentários da imprensa séria. Nas bancas, os jornais e as revistas colam-se uns aos outros com as suas capas de misérias expostas, de grafismos miseráveis, de temas em geral jornalisticamente miseráveis e ainda das misérias reais que a crise traz e que se cola também aos dias que passam.

Entro numa livraria depois de olhar a montra que parece prolongar a miséria da banca dos jornais. Está quase deserta como as mesas dos cafés; rodando entre as estantes e de sala em sala, seguindo os temas escritos em grafismo antigo nas velhas estantes, ainda podemos encontrar algum tesouro esquecido, um livro de poemas de uma coleção há muito desaparecida, um ensaio traduzido que as bibliografias referem e nunca pudemos ler.

Tomo de novo a rua, e subo. Oiço os músicos improvisados que procuram sobreviver, incomodando a beleza da luz que pulsa sobre o calcário; passo frente às igrejas de fachadas rasas e claras; cruzo casais desgarrados de turistas – com os seus cabelos louros no cimo das máscaras coloridas, parecem perdidos nos seus circuitos pré-determinados por uma cidade onde agora, de repente, se sentem de novo em minoria.

As pracinhas abrem-se e fecham-se, inclinadas umas sobre as outras, ligadas por ruas estreitas e serpenteadas, sujas pelas árvores que se desfazem das folhas, pelo lixo esquecido da noite, pelos carros acumulados uns sobre os outros na sua usual e deselegante densidade. A estatutária é pobre e a arquitetura, regular e pálida, transmite-nos a segurança de uma coisa doméstica rodeando-nos sem excessos num abraço delicado.

Entro num museu e é uma caixa deserta onde as pinturas, as pratas, os tecidos brilham só para mim. Obrigo-me a sair sob chuviscos raros com ideia de me meter no metro para alcançar uma reunião já combinada; mas entrevejo o rio entre as frestas das ruas que descem e não resisto: vou, quase a correr, encontrar o mar que ele me anuncia. Estou em Lisboa e é já amanhã que me vou embora.

 

Esta crónica é difundida todas as semanas, à segunda-feira, na rádio Alfa, com difusão antes das 7h00, 9h00, 11h00, 15h00, 17h00 e 19h00.

 

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