Opinião: De França a Portugal, a união impossível


A Direita francesa é, hoje, maioritariamente composta por três famílias políticas. A família nacional-popular estatizante (RN – ID), a família nacional-conservadora liberal em economia (R! – ECR), ambos com um forte cunho identitário, e a tradicional família de centro-direita moderada (LR – PPE), ideologicamente muito próxima da segunda.

Face a esta federação de direitas, encontram-se dois grandes grupos: 1) o bloco “centrão” macronista (liderado por RE – Renew), liberal, progressista, europeísta e sobretudo de uma ambiguidade ideológica pragmatista, rejeitando a designação esquerda/direita; e 2) o bloco da aliança de esquerda e de extrema-esquerda, uma coligação contra-natura de socialistas (PS – S&D), verdes (EELV – G/EFA), comunistas (PCF – GUE/NGL) e “insubmissos” (LFI – GUE/NGL), estes últimos representantes da hegemónica esquerda radical anti-establishment, anti-austeridade, eurocética, anti-NATO e islamo-gauchiste, ou seja, de um sectarismo etnoracial que a fez seduzir cerca de 70% dos votantes da diáspora árabo-muçulmana nas eleições presidenciais de 2022, tornando-se a voz das banlieues islamizadas.

Defendo que uma união, em sede de coligação pré-eleitoral, entre as três direitas supramencionadas é fundamental por duas razões.

Em primeiro lugar, porque a necessidade de mobilização de eleitorados complementares é fundamental para fazer face a uma super-coligação liderada por quem prega um discurso de ódio anti-polícia, de apelo a insurreições urbanas contra reformas legislativas, de luta de classes, de comunitarismo racial e de antisemitismo, que se aproxima já de reunir 30% das intenções de voto dos franceses. É evidente que quem representa o maior perigo existencial para a França hoje é Jean-Luc Mélenchon, que a pretende governar com um modelo neo-soviético de inspiração wokista e conivência com a sharia (como se fosse filosoficamente possível algum entendimento entre Stalin, Sandrine Rousseau e Maomé). Ora, examinando as sondagens, percebemos que Jordan Bardella parece ser o único capaz de impedir a chegada de Mélenchon a Matignon. Porém, o RN nunca conseguiu penetrar no eleitorado da burguesia patriota francesa, historicamente fiel à família política dos republicanos (LR) e, desde as eleições de 2022, a Eric Zemmour (R!).

Segundo, porque apesar das diferenças doutrinárias, os checks and balances trazidos pela influência ideológica fiel à direita clássica de R! e LR, mesmo em menor posição de força eleitoral, são fundamentais para mitigar os excessos do RN, em particular os seus tiques marxistas. Uma vitória solitária do RN, com um programa económico de índole socialista, onde se destacam medidas como a reversão da subida da idade da reforma, a nacionalização das autoestradas ou a saída do mercado europeu da eletricidade, seria um desastre anunciado para as contas públicas francesas.

Entretanto, o terramoto político vivido em França, no rescaldo dos resultados das eleições europeias, veio precipitar interessantes desenvolvimentos.

No seguimento de uma série de episódios de traições e ajustes de contas internos dignos do argumento de House of Cards, Zemmour (R!) e Eric Ciotti (LR), foram alvo de um putsch, vendo os seus partidos – representando, juntos, cerca de 1/3 do eleitorado de direita francês – imersos num clima de guerra civil, entre expulsões, deserções e cisões, motivado pelo projeto inédito de união das direitas que se perspetivou, aquando do anúncio de dissolução da Assembleia Nacional por parte de Macron.

Em suma, Zemmour acabou preterido por Bardella e Le Pen e perdeu os seus três vice-Presidentes, mas manteve o partido estável. Ciotti viu-se abandonado pelos “barões” republicanos e perdeu os quadros do partido, mas conseguiu selar uma espécie de ‘joint venture’ eleitoral com o RN, com recurso a candidatos da sociedade civil. Resultado: não haverá uma coligação, com a fusão dos programas e melhores quadros das três grandes forças de direita, nas eleições legislativas de 30 de junho, apesar de 3/4 dos eleitores de direita a pretenderem. Não será desta que a submissão à vontade do eleitorado impera, nem que os principais líderes políticos de direita têm da política uma noção de serviço. Mais uma vez, triunfou a dualidade de critérios que permite à esquerda francesa aliar-se a forças radicais, à medida que impõe à direita uma intransigente submissão a códigos do passado.

Na França dos anos 80, o golpe de génio de Mitterrand de dar palco a Jean-Marie Le Pen de forma a desestabilizar e dividir eleitoralmente a direita, colheu frutos, culminando com a imposição de um perpétuo cordão sanitário aos partidos de direita moderada em relação ao antigo Front National (RN). Esta habilidade política foi replicada pela esquerda em Portugal, impondo ao PSD a exclusão do Chega de uma maioria de Governo. Tal como Chirac, Luís Montenegro mordeu o isco. Com uma incompreensível submissão a uma suposta hegemonia moral da esquerda (“linhas vermelhas”), a maior maioria parlamentar reformista de sempre deu lugar a um Governo de minoria sem rumo certo – um Governo, dizem-nos, “de combate”, seja lá o que isso signifique.

Com isto, pergunto-me até quando estaremos condenados a ver formar Governo quem não tem força eleitoral ou vocação suficiente para endereçar as causas do declínio do país: em França, uma imigração de massa não-assimilacionista, as ameaças à laicidade, a insegurança, a insustentabilidade do super-Estado social e a inflexibilidade do mercado laboral; em Portugal, a necessidade de reforma da administração pública, do sistema fiscal, de habitação, de justiça e do SNS e o combate ao inverno demográfico.

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João Cruz Ferreira

Funcionário da UE destacado em Paris

Autor de “A França a olho nu”