Opinião: Mais uma reforma ou princípio do desmantelamento do sistema de pensões em França?

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Após as grandes manifestações de 2019 e o parêntese da pandemia, o Governo Macron resolveu voltar à carga com a reforma das pensões que constitui um compromisso de campanha com o seu eleitorado de reformados abastados e o grande patronato, desencadeando uma ira popular inédita, e ressuscitando uma frente sindical unida de que já não havia memória há mais de uma década em França.

Com efeito, esta reforma – para além de acontecer num momento económico e social particularmente delicado, marcado pela forte inflação e a diminuição do poder de compra das famílias, afetando com particular violência as classes populares – é não só injusta, como desnecessária.

É injusta, ao propor um recuo da idade da reforma de dois anos, de 62 para 64, e uma aceleração do período contributivo de 43 anos que vai prejudicar, em primeiro lugar, os trabalhadores mais modestos e com trabalhos mais penosos, bem como as mulheres com carreiras profissionais intermitentes e salários desiguais.

Com efeito, a esperança de vida não é igual para todos (um operário tem uma esperança de vida inferior em 7 anos a um executivo) (1), sendo que 1/3 dos trabalhadores já não está empregado na altura de poder aceder à reforma, o que, no império do novo projeto, implicará o prolongamento dos períodos em que se não é nem empregado nem reformado, e a criação ou intensificação de bolsas de pobreza (2), com as respetivas consequências negativas para a saúde dos trabalhadores e o valor das pensões…

Por fim e, contrariamente à narrativa do Governo, este projeto não é mais justo para as mulheres, não contendo nenhuma medida que contrarie as desigualdades de género ao nível de pensões que continuam a ser muito importantes, nomeadamente no que respeita ao valor das pensões diretas das mulheres, inferiores de 40% às dos homens, ao tempo de carreira mais curto, 40% das mulheres contra 32% dos homens, reformando-se com carreiras incompletas, enfim, à idade mais avançada na qual as mulheres acedem, em média, à reforma, já que 19%, contra 10% dos homens, aguardam pelos 67 anos a fim de evitar sofrer cortes nas suas pensões.

Mas, para além de injusta, esta reforma é desnecessária, o que acresce à perceção da sua injustiça. O argumento avançado pelo Governo para a justificar, é o remake da mesma encenação que serviu para justificar as reformas anteriores, a saber o fator demográfico, traduzido na diminuição do rácio número de ativos/número de reformados, e o défice insustentável daí decorrente.

Ora, como pertinentemente faz notar o economista Michäel Zemmour, as reformas anteriores que o mercado de trabalho ainda não absorveu (recorde-se inclusivamente a passagem ainda recente (2010) da idade da reforma dos 60 para os 62 anos) exigiram esforços superiores ao aumento da esperança de vida que, sendo um facto, se realiza a um ritmo cada vez mais lento.

Por outro lado, e longe do catastrofismo do Governo, o défice do sistema de pensões previsto nos próximos anos é despiciendo (12 mil milhões de euros anuais) quando comparado com o valor total que as pensões envolvem (mais de 300 mil milhões de euros), e com o défice público (172 mil milhões projetados para 2023), não justificando qualquer precipitação reformista.

Na realidade, a atitude do Governo francês, apresentando-se como salvador de um sistema em perigo, reside no facto de a reforma das pensões não proceder de um diagnóstico inerente ao sistema de pensões, constituindo, antes, a forma (ou a variável de ajustamento) que escolheu para poder respeitar a trajetória das finanças públicas que traçou e com que se comprometeu com Bruxelas (3), numa altura em que decidiu continuar a baixar os impostos de produção das empresas num valor que vai representar 8 mil milhões de euros anuais, a partir de 2024.

Sacrificar a saúde e o merecido direito ao descanso da população, sobretudo da mais vulnerável, destronando a França do lugar que ocupava no pódio dos países onde o sistema de pensões era o mais generoso e produzia o menor número de pobres, para presentear o capital em nome do sempiterno mas desmentido aumento da competitividade da economia francesa: eis mais um passo que é dado na construção já avançada da sociedade com que o neoliberalismo – de que o macronismo é um dos expoentes máximos – sonha: a sociedade da regressão social.

É na via desta sociedade de regressão social que se insere a reforma imediatamente anterior a este projeto, do seguro de desemprego que é, como justamente a analisa o economista Romaric Godin, a outra face da mesma moeda, amputando drasticamente os direitos dos desempregados, mas fazendo poupar ao Estado 4 mil milhões de euros de despesas públicas. No fundo do túnel já se vê com nitidez uma sociedade de pleno emprego, mas um pleno emprego de miséria, como o qualifica justamente o mesmo autor, já que o objetivo é assegurar às empresas, numa economia de baixa produtividade, uma mão de obra cada vez mais barata, constrangida, para sobreviver, a produzir riqueza até à última possibilidade.

Desmistificados os objetivos da reforma das pensões, a saber continuar a empanturrar as empresas com ajudas públicas – que só no período 2006-2018, sob diversas formas, das subvenções às prendas fiscais, passando pela diminuição (ou isenção) das contribuições sociais sobre os salários (4), e sem nenhuma exigência de contrapartida, cresceram 5 vezes mais depressa do que o PIB (5) – e oferecer ao patronato um “mercado de trabalho” domesticado, podemos dizer com o economista e filósofo Frédéric Lordon, que a reforma em questão dever-se-ia chamar “serviço do capital”.

Este serviço do capital, exige doravante que se vá para além do objetivo de estabilização das pensões no orçamento de Estado, enveredando pela sua diminuição. É a razão pela qual, esta reforma pode constituir um marco na via do desmantelamento do sistema de pensões por repartição em França, criado no pós-guerra e baseado na solidariedade intergeracional, satisfazendo assim o apetite voraz do capital financeiro que vê com cada vez menos bons olhos, um tesouro de mais de 300 mil milhões de euros escapar-lhe.

As economias que esta reforma vai permitir realizar, serão parcialmente anuladas, desde já, pelo aumento inelutável do desemprego dos seniores a degradação da respetiva saúde e o recrudescimento dos acidentes de trabalho num país onde estes já atingem um triste lugar de relevo nas comparações europeias.

Mas a reforma das pensões deve ser analisada no âmbito mais vasto da filosofia política dominante que a sustém, como no-lo propõe a filósofa Barbara Stiegler, a saber o neoliberalismo. Querendo fazer tábua rasa do passado, o seu objetivo é suprimir todos os espaços e temporalidades que possam oferecer abrigos face ao grande jogo da competição mundial no qual cada um deve participar. Assim analisada, a ideia mesmo de se retirar (de se reformar) é, para a ideologia neoliberal, um arcaísmo (6).

Cristina Semblano

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne

Ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV – Sorbonne

e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle

Notas:

(1) Um outro indicador desta desigualdade é o da esperança de vida na reforma que é, para os 20% de trabalhadores mais pobres, inferior de 7 anos, à dos 20% mais ricos.

(2) Segundo dados da Administração, pode avaliar-se entre 150.000 a 200.000 o aumento do número de desempregados e de beneficiários do RSI, induzido pela nova reforma, número a comparar com o do aumento projetado do emprego dos seniores (300.000).

(3) Ou seja um crescimento médio da despesa pública em volume de +0.6% entre 2022 e 2027, o que representa uma evolução significativamente inferior ao crescimento potencial da atividade, assim como reza o PLF (Projeto de Lei de Finanças para 2023) e o Programa de Estabilidade 2022-2027. É de notar que tanto no PLF 2023, como no Programa de Estabilidade, a reforma das pensões é apontada como devendo participar no objetivo de controlo das despesas públicas, o que desmente formalmente a tese da necessidade de salvação do sistema ultimamente invocada pelo Governo para justificar a reforma.

(4) Desistir destas exonerações ou de parte delas, seria um dos meios para o Governo de resolver o problema do défice das reformas que tanto parece preocupá-lo, a par de outros, como o aumento da taxa contributiva, a submissão da poupança salarial a quotizações para a reforma, etc.

(5) Num livro recentemente publicado (2022) com o título explícito de “Un pognon de dingue, mais pour qui? L’argent magique de la pandémie” (Uma massa maluca, mas para quem? O dinheiro mágico da pandemia”), o economista Michel Combes e o jornalista Olivier Petitjean propõem a designação de Corporate Welfare para caracterizar este Estado-providência posto ao serviço do setor privado.

(6) Barbara Stiegler, entrevista ao Jornal Libération, 20 de dezembro de 2019.

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