Opinião: Moi Je… Ou como uma escritora deve justificar tudo, menos o seu talentoCristina Branco·Opinião·27 Maio, 2025 Há uma antiga expectativa que paira sobre cada mulher que escreve: a de que as suas palavras não sejam apenas lidas, mas devassadas. Se escreve sobre o amor, certamente procura-o. Se fala de violência, é porque a sofreu. Se toca na melancolia, é porque está perdida de solidão. E se ousa abordar o desejo, então é melhor que se explique: ou está à caça ou descompensada. Porque, para muitas pessoas, mulheres não escrevem sobre o mundo, escrevem de si. E é essa confusão entre o íntimo e o universal que se torna o primeiro obstáculo à sua credibilidade. Segundo um estudo publicado pelo VIDA: Women in Literary Arts, os homens continuam a ser os mais representados nas recensões literárias das publicações de prestígio. Em 2020, por exemplo, a London Review of Books publicou resenhas de 245 livros de autores masculinos e apenas 71 de autoras. A New York Review of Books, no mesmo ano, manteve uma proporção semelhante. Já em França, segundo um levantamento feito por Les Glorieuses, apenas 12% dos prémios literários de grande prestígio entre 1900 e 2020 foram atribuídos a mulheres. E quando escrevemos, escrevemos com a cabeça cheia destas estatísticas. Não porque queremos, mas porque nos exigem sempre mais. Mais justificação, mais coerência entre vida e obra, mais modéstia, mais “recolhimento”, mais “discrição”. Numa palavra: mais silêncio. Nas páginas de “Les femmes qui écrivent sont dangereuses”, encontramos esse eco histórico. As mulheres que ousaram escrever foram, em diversos momentos, silenciadas, ridicularizadas ou relegadas ao domínio do confessionalismo. A literatura feita por mulheres sempre foi interpretada como uma extensão dos seus estados de alma, raramente como uma reflexão sobre o mundo. E é por isso que, quando escrevo, hesito. Hesito porque sei que há leitores que me observam com a lupa da suspeita. Que procuram, nas entrelinhas, o que eu escondo: será que sofreu? será que deseja? será que está infeliz? Como se a escrita fosse uma confissão, não uma criação. Não se admite, em certos meios, que uma mulher possa simplesmente escrever. Que possa dominar a ironia, construir enredos, inventar personagens. Que possa abordar temas com distanciamento e rigor. E se não comparece ao lançamento do seu livro acompanhada de marido, filhos e cão, então algo está errado: não será um pouco desajustada? Os homens rodam à volta como se pudessem fazer com a escritora aquilo que ela faz com os personagens, moldá-la aos desejos deles. Escritora que se preze deve ter uma vida doméstica visível. Caso contrário, não é levada a sério. Uma mulher sozinha no Salão do Livro de Genebra é quase sempre uma suspeita. Deve ter ido pelos copos. Deve andar metida com alguém. Porque a ideia de que uma mulher possa viajar de forma profissional como um homem, continua a ser desconcertante. Há um provincianismo emocional que nos persegue. Nas pequenas comunidades, ninguém compreende que escrever é um trabalho. Que exige horas de concentração, rascunhos, versões, leitura crítica, edição, revisão, provas de impressão, registos legais, e depois só depois a apresentação pública. E mesmo aí, espera-se que seja uma espécie de chá de domingo, com croissants e família em peso, onde a escritora, no fundo, apenas se exibe. Porque se está só, ou se parece demasiado independente, é logo “menos séria”. E eu escrevo. Continuo a escrever. Tento, teimosamente, contornar o íntimo, e partir para o universal. Mas cada vez que alguém me pergunta “este livro é sobre si?”, sinto que falhei. Porque o que deveria interessar a estrutura, a linguagem, os dilemas das personagens, o movimento subterrâneo da história perde-se na tentativa de me reduzir a um retrato emocional. Num mundo onde os homens escrevem sobre guerras, metafísica e grandes amores sem serem questionados sobre a sua sanidade ou vida sexual, a mulher que escreve ainda tem de justificar o seu ponto de vista, o seu corpo e, frequentemente, a sua solidão. Escrever, para uma mulher, é ainda um ato de resistência. Contra os estereótipos, contra o folclore doméstico, contra a eterna desconfiança. Somos, como escreve Laure Adler, perigosas não por aquilo que dizemos, mas por ousarmos dizê-lo. E que me desculpem os bem-intencionados, mas escrever não é um chá de família, é, muitas vezes, um duelo à mesa de trabalho, entre aquilo que se é, aquilo que se pensa e aquilo que, por fim, se escolhe partilhar. . Cristina Branco