Opinião: Notre Dame de Paris e Fernando Pessoa

Por aqui, continuamos a enganar a pandemia com viagens ao passado e ao futuro a partir do que guardamos no quarto das nossas memórias. Mas a crise pandémica quase fez passar despercebida (e foi uma oportunidade perdida, em termos mediáticos e políticos) a merecida evocação do desastre que, há um ano, abalou Paris, a França, o mundo religioso católico (e nestas três dimensões a Comunidade portuguesa tem lugar de destaque) e os problemas que a sua resolução levanta.

Em 15 de abril de 2019, o incêndio da Catedral de Notre Dame quase nos fez assistir à destruição de um lugar com mais de oito séculos de história. De todas as grandes catedrais góticas do mundo e de França (Reims, Chartres, Rouen…) a de Paris tornou-se ícone de uma cidade e de um país através da genialidade de duas obras do século XIX: o romance homónimo de Victor Hugo que a tomou como verdadeira personagem e as intervenções arquitetónicas neogóticas que nela realizou Violet-le-Duc.

No final deste processo, o filme de desenhos animados da Disney, é já um resultado mas também contribui para um reforço de visibilidade que a indústria do turismo de massas divulga e vende como um produto simplificado.

Projetamos no futuro essa história discutindo, agora, os métodos técnicos de reconstrução, a introdução ou não de modernizações formais (vai ou não reconstruir-se “tal e qual” a famosa flecha de Violet-le-Duc, tão pouco original como as gárgulas que fez esculpir mas que criaram a tal imagem a-temporal que hoje temos do edifício?) a falta ou não dos meios mecenáticos de financiamento, o interesse político em ter a obra terminada em 2024 a tempo dos Jogos Olímpicos.

A verdade é que atrás deste ícone da cultura de massas, que os meios de comunicação exacerbaram, se acumulam, quase esquecidas, muitas outras destruições. Já nem falo das antigas para as quais, desde as cruzadas o Ocidente muito contribuiu, mas apenas das recentes, que desde o Afeganistão à Síria têm vindo a empobrecer dramaticamente a herança cultural a humanidade.

Num tempo em que não podemos viajar (a Notre Dame deixou ser partilhada nas fotos dos milhares de turistas que a visitavam…) e em que já vos evoquei Xavier de Maîstre e a sua pequena ficção “Viagem à volta do meu quarto”, como modo inteligente método de desconfinamento interior, Fernando Pessoa é também uma muito boa companhia. Ele que, depois de regressar da África do Sul, para onde acompanhara, muito jovem, a mãe e o padrasto, nunca mais viajou, mas que, definindo-se como “viajante imóvel”, percorria os mundos exteriores e interiores que queria.

Um artigo no Le Figaro de 23 de abril, refere que as redes sociais estão sempre cheias (e agora especialmente) de citações reais ou apócrifas de Pessoa. Felizmente, o artigo (de meia página com chamada à capa) não cai na tentação de apresentar a obra de Pessoa como solução de “Auto-Ajuda”, o que seria tão criminoso como as simplificações de que é vítima a Notre-Dame. Na verdade, ninguém se salva da angústia de viver ao lê-lo, e pode mesmo agravar essa angústia… mas certamente que se liberta da mediocridade e imobilismo do quotidiano – tal como ele (obscuro empregado de escritório) (ou os seu muitos outros Eu dos seus muitos heterónimos) se libertou.

É Pessoa quem nos diz que “Temos duas vidas: a verdadeira, aquela que sonhamos desde a infância e que continuamos a sonhar adultos sobre um fundo de nevoeiro; a falsa, aquela que partilhamos com os outros, a vida prática, a vida útil”. E é ele ainda, num eco do provador ao “Je est un autre”, de Rimbaud, nos diz que “Viver é ser um outro”.

O artigo é didático, correto mas pouco aprofundado. Mas há uma muito interessante lição a tirar da sua leitura: é o facto do redator não sentir necessidade de explicar certos termos bem específicos da cultura portuguesa quando os usa: nem tenta explicar a complexidade da palavra/conceito Saudade, nem o que significa, na topografia lisboeta, a Baixa que o poeta percorria. Opção que nos demonstra como já estão assimilados na convivialidade que o público francês mantém com a realidade cultural portuguesa e com o seu quotidiano urbano.

Esperemos que o confinamento turístico não dure tanto que os Franceses (que sabemos serem dos mais cultos turistas do mundo) venham a perder essa familiaridade com a vida e com a realidade cultural portuguesa.

Boas escolhas culturais e até para a semana.

 

Esta crónica é difundida todas as semanas, à segunda-feira, na rádio Alfa, com difusão antes das 7h00, 9h00, 11h00, 15h00, 17h00 e 19h00.

 

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