Opinião: Uma Europa, ainda por transformar


A invasão da Ucrânia pela Rússia a 24 de fevereiro de 2022 foi um choque tremendo para a Europa. Este facto, somando-se às múltiplas crises que nos últimos anos se sucederam e puseram à prova a solidez dos laços entre os Estados-Membros, o “regresso da guerra” no continente europeu foi sentido como um momento de tudo ou nada para a União Europeia inteira. É nesse quadro que decorreram as eleições do Parlamento Europeu onde não faltaram ecos a ressoar dentro das nas nossas cabeças afligidas pelo presente paradigma.

De facto, a realidade da guerra às nossas portas, precipitou antes de tudo um repentino despertar pelo hodierno e doravante patente cenário geopolítico da União Europeia: será que ela está hoje em condições de agir como potência (política) num mundo caótico e cada vez mais perigoso?

A azáfama desencadeada pela decisão de impulsionar novamente uma indústria de armamento europeia sob o impulso da Comissão Europeia, no seguimento das declarações de Emmanuel Macron, frisando um possível envio de tropas para a Ucrânia, testemunham a ambivalência que ainda caracteriza este despertar ou a falta dele para uma consciência “europeia”.

Será que estamos plenamente cientes das consequências que uma derrota da Ucrânia implicaria para a soberania e a paz na Europa?

E agora que outra guerra, tão terrivelmente mortífera, e que dura há já vários meses em Gaza, estaríamos realmente cônscios dos efeitos a longo prazo da desestabilização do Próximo Oriente e da animosidade (para não dizer ódio) maioritária nas opiniões públicas pelo mundo fora, contra nós? Contra o Ocidente?

O Chanceler alemão Olaf Scholz referiu uma “mudança de época”. Esta mudança de época revela também várias contradições internas no próprio funcionamento da União Europeia. Por exemplo, chegou a altura em que alguns advogam para que a UE se dote – até que enfim desde a primeira hora da CED, em 1954 – de uma política comum de segurança e de defesa, num contexto em que a garantia de plena segurança do chapéu protetor americano já não está assegurada. Porém, há demais Estados-Membros que temem que esta nova configuração obrigue a UE a desviar-se ou a renegar o seu ideário e princípios fundadores. Na verdade, a existência da União Europeia não está em causa, nem corre o risco de desaparecer de um dia para outro, contudo, a sua razão de ser encontra-se enfraquecida, a partir do momento em que a democracia, o Estado de direito e a justiça social estão a nível interno visivelmente debilitados (em vários Estados-Membros). Pois então, podemo-nos colocar a questão seguinte: qual é, no fundo, a Europa que queremos realmente defender?

Outrora, estas questões já foram colocadas pelos próprios artesãos da construção europeia, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, e que agora voltam a uma atualidade que diria, de forma quase inesperada ou desesperada. Nas páginas do “Esprit”, quando os Estados Unidos esboçavam o plano Marshall já temiam a divisão do continente em blocos antagónicos, lembrando que “a primeira vocação da Europa era fazer com que a terceira Guerra mundial nunca viesse a acontecer”.

Talvez que a nossa velha Europa só teria realmente sentido se o realismo e a eficácia se conjugassem com o “sentido do ser humano” numa Europa interligada em relação com o resto do mundo, como uma “casa” e não como um “bastião”. O ano de 2024 restará como um ponto de viragem para a União Europeia.

Todos os quadrantes políticos concordam sobre um ponto: a UE deverá transformar-se. Mas de que forma? Um dos sinais mais preocupantes a este respeito é o aumento de poder dos Grupos parlamentares de uma Direita mais populista (mais maioritária em 2024 do que em 2019) e, em particular a de uma Extrema-direita com mais eleitos, que ameaça romper a Democracia e os frágeis equilíbrios atuais no Parlamento europeu. Os resultados cristalizaram a vontade popular e indicam uma maioria longe do centro moderado, humanista e democrata-cristã fundador.

Apesar das evidentes imperfeições e sofismas plasmados no discurso realizado pelos seus recriminadores, a Europa foi-se aperfeiçoando. Muitos expeditos também denunciam uma Europa rendida ao comércio absolutamente livre-câmbio de pessoas e bens de forma desenfreada, mas com principal ênfase no ponto dos fluxos migratórios descontrolados se bem que, o desígnio do Parlamento europeu deverá permanecer na proteção dos povos e na luta contra a ingerência da sua soberania.

O horizonte de um novo alargamento, tanto do lado da Ucrânia, como a outros países dos Balcãs Ocidentais, também nos convida a rever a questão institucional. A União Europeia deu provas de inventividade e criatividade quando foi necessário ao longo da sua história e soube reunir recursos e redefinir as suas competências comunitárias no momento mais crítico da pandemia.

Quais demais evoluções e transformações poderão enfraquecer uns ou fortalecer outros, quando se perspetiva que a UE contará num futuro próximo com 35 Estados-Membros? Por fim, como poderemos garantir também uma melhor representação e vida democrática com tanta gente?

A questão é claramente política, numa altura em que a ira e o ressentimento dos agricultores conduzem paradoxalmente ao reforço do espaço público europeu: fazer de Bruxelas o lugar de convergência dos tratores vindos de toda a Europa para fustigar as limitações e as injustiças ligadas à política agrícola comum, ao Pacto Verde ou aos Tratados de comércio livre, equivale a reconhecer a centralidade do poder europeu, mestre no jogo em matéria agrícola, ambiental e comercial. Adotado em 2019, o Pacto Verde é, sem dúvida, o projeto mais ambicioso do mandato de Ursula von der Leyen e do Parlamento europeu eleito há cinco anos. Mas o que resta hoje, quando os governos e a Comissão decidiram adiar todos os prazos da transição ecológica, sob a pressão dos interesses instalados das grandes multinacionais agrícolas e industriais?

Sem um projeto credível para um futuro mais sustentável, mais solidário e mais justo, em matéria fiscal, social e ambiental, poderá a União Europeia sobreviver aos anseios e às expetativas dos seus (con)cidadãos?

Neste momento fulcral entre a irrupção da guerra e as eleições de alto risco, o PS português como os demais partidos irmãos europeus, que partilham os mesmos ideais, propõem defender de forma fiel e corajosamente a essência do espírito europeu para tornar os dias de todos os europeus sem exceção mais felizes.

Uma Europa, de valores fundamentais respeitadores e respeitados e um Estado de direito almejado pelo resto do mundo que pugna pelo fortalecimento das democracias. Uma Europa democrática, envidando todos os esforços contra as discriminações, contra a corrupção e solidária nomeadamente para com os migrantes que lhe pedem asilo. Uma Europa verde concretizando de uma vez por todas o pacto ecológico ambicioso que foi assinado e que permite mitigar as alterações climáticas. Uma Europa digital com uma IA que não se sobrepõe sobre o propósito da vontade humana. Uma Europa social com a criação de um complemento europeu de subsídio de desemprego. Uma Europa que apoie os jovens no sentido de obter um melhor acesso à habitação. Uma Europa, próspera e competitiva com enfoque na sua economia tornando-a mais capacitada no âmbito orçamental da zona euro, mais autónoma com a criação de um Fundo europeu de investimento e a promoção da reindustrialização planeado em cada Estado-Membro. Uma Europa, alargada e reformada, apoiando a integração progressiva se bem que diferenciada de recentes Estados-Membros candidatos. Uma Europa, com um lugar mais preponderante no Mundo e afirmativa nas suas posições de modo a tornar-se um ator incontornável da geopolítica global.

Eis aqui 9 desideratos nobres para alcançar durante esta nova legislatura europeia cuja descrição mais pormenorizada poderá ser encontrada no Manifesto socialista para o Parlamento europeu e que serão defendidos pelos Eurodeputados portugueses junto dos camaradas no Grupo S&D.

Em abono da verdade, como se pode conceber, este nosso futuro comum sem a Europa tal como a conhecemos, apesar de reconhecermos as suas imperfeições, mas igualmente o seu papel imprescindível, foi pontilhado de progressos ansiados? Aliás, quem é que pretende ver fronteiras restabelecidas e ver cada país da UE a ensimesmar-se, a separar-se?

Em síntese, a Europa ainda é uma ideia nova, cheia de futuro, de dias mais felizes para nós, Europeus – ainda que por transformar. Com António Costa a presidir o Conselho da União Europeia, dar-se-á maiores chances de transformação, de progressos para ver uma Europa que conte deveras no Mundo e para o Mundo, servindo os seus povos. Até que enfim.

Nathalie de Oliveira
ex-Deputada (PS) pelo circulo da Europa
ex-Maire-Adjointe de Metz