LusoJornal | Mário CantarinhaPaula Gonçalves contou a vida e a obra de António Cravo durante homenagem em ParisMário Cantarinha·Comunidade·4 Dezembro, 2025 Paula Gonçalves, a filha do escritor, historiador e sociólogo Jaime Gonçalves, mais conhecido pelo pseudónimo de António Cravo, falecido recentemente, participou numa homenagem que teve lugar nos Salões Eça de Queirós do Consulado-Geral de Portugal em Paris, organizada pelo editor João Heitor e na qual participou a viúva Maria do Céu Gonçalves, os dois filhos do homenageado, Paula e Rui Gonçalves, a Cônsul-Geral de Portugal em Paris, Mónica Lisboa, o professor José Carlos Janela e o ator Jorge Tomés, entre muitas outras pessoas. Transcrevemos na íntegra, a emocionante intervenção de Paula Gonçalves, porque resume a vida e a obra do homenageado. .+++++++ . Falo em nome da minha família. Antes de mais, os meus sinceros agradecimentos pela realização deste evento à Senhora Cônsul-Geral, aos funcionários do Consulado-Geral de Portugal em Paris, como também ao João Heitor, amigo e editor que permitiu hoje a reedição de “Os Desenraizados”. Agradeço também a presença de todas e de todos. O meu pai, Jaime António Gonçalves, nasceu em 1935, em Salcelas, conselho de Macedo de Cavaleiros, como filho ilegítimo, rejeitado ou ‘zorro’, como se dizia na altura, em Trás-os-Montes. Esta situação de filho de uma mãe solteira, a Maria do Trigo, e tendo sido rejeitado pelo pai, o Engenheiro Valdrez, foi a grande mágoa que ele teve durante a vida inteira. Porém, esta sua condição social, em conjunto com a sua força natural de vencer as vicissitudes da vida, foi o motor que o animou logo de muito novo. E como ele escreveu quando foi para a tropa, em abril de 1956, cito, “o meu sonho, nestes meus 20 anos, era transformar radicalmente a minha vida. Na minha mala de cartão, iam as minhas esperanças de voltar um dia de visita, já com outra condição social. Por isso, saí alegre e contente de Salcelas para Lisboa”. Na capital, onde resolveu ficar, o meu pai conseguiu atingir os objetivos que o tinha determinado: encontrar um trabalho estável, que lhe garantisse o sustento, estudar até tirar o curso superior e fundar uma família. Porém, alguns obstáculos foram surgindo neste caminho que ele tinha imaginado. Primeiro, surgiu o falecimento precoce da mãe, que deixou os restantes filhos ao encargo dos avós. O meu pai decidiu então – com a ajuda da minha mãe – tomar a responsabilidade das irmãs menores, Matilde e Judite, e apoiar o irmão Manuel, que brevemente iria para a tropa. Anos mais tarde, foram os acontecimentos nacionais que provocaram a mudança do rumo inicialmente planeado pelo meu pai. E assim, nos encontramos em Paris, eu, os meus pais e o meu irmão, vivendo a experiência do exílio e da emigração. Para o meu pai, que estava a chegar aos 40 anos, recomeçar a construir a vida com esta idade e num país estrangeiro, foi uma grande mágoa, que veio reativar aquela que levava marcada na sua alma desde a infância. No entanto, apoiado pela minha mãe, e graças àquela chama forte que sempre lhe deu ímpeto para avançar, o meu pai, tal um otimista, conseguiu transformar a dor profunda da sua alma, em obra de relevo para a humanidade, tanto em França como em Portugal. A sua vivência ligada às atividades do campo, constituiu os alicerces da sua vida e o apego à sua terra natal ficou-lhe gravado para sempre no coração. E como deixou escrito no poema intitulado “O meu corpo é desta terra”, cito, “sangue meu subiu ao céu, ar em mim sangue se fez, a terra força me deu, a substância me envolveu, nasceu alma desta vez”. Por isso, por detrás de tudo o que o meu pai fez, se descobre a sua relação muito forte com a ruralidade, com a região e aldeia que o viu nascer e ainda com os familiares com quem viveu durante a infância e a adolescência. Para o meu pai, deixar marco através das suas obras era cumprir como dever ancestral a transmissão que recebeu dos avós maternos por via oral, e cito: “nos serões do inverno, ao calor da fogueira e pelos caminhos do campo”. Logo ao chegar à França, o meu pai encontrou no seio da Comunidade portuguesa de Paris e arredores o calor e carinho das suas raízes rurais que o ajudaram a superar o desenraizamento. Em Paris, o meu pai dedicou-se à defesa da língua e da cultura portuguesa contribuindo com empenho para o ensino de português. Em Paris XVI, no final dos anos 70, foi professor de alfabetização de emigrantes na Comunidade portuguesa deste bairro e foi também reestruturador, entre outros, e coordenador, da Escola de la Boissière. Por esta escola, que existiu durante uns 20 anos, passaram muitos jovens portugueses que depois puderam ingressar no ensino superior e mais tarde desempenharem funções importantes. Ao longo dos anos, o meu pai participou de maneira ativa na vida associativa dos portugueses em França e também incentivou inúmeras manifestações literárias e culturais, como, por exemplo, o lançamento, em 1984, do primeiro Festival de poesia emigrante em Paris. Se, por um lado, foi cá, por terras francesas, que o seu gosto pela escrita se desenvolveu, por outro, o meu pai escolheu como pseudónimo para assinar, em 1982, o seu primeiro artigo publicado no jornal Le Monde, “Le Lait de la Petite Chèvre”, como pseudónimo o nome de António Cravo, em homenagem ao seu avô materno que o criou. Como poeta, historiador e sociólogo, o meu pai escreveu uma dúzia de livros, alguns relacionados com a emigração portuguesa, tendo outros uma dimensão regional ligada a Trás-os-montes e, por fim, alguns também de dimensão nacional. Dois estão traduzidos em francês. Participou em inúmeras publicações, essencialmente com poesia, e também com alguns textos em história e arte. Dois dos seus textos em prosa foram premiados. Prefaciou livros de outros autores. Foi também colaborador de vários jornais em português, tanto em França como em Trás-os-Montes. E, como autor, o seu nome foi incluído no dicionário dos mais ilustres transmontanos e alto-dourienses. Tudo o que o meu pai escreveu foi à mão e em português. Depois, era a minha mãe que passava tudo à máquina e, anos mais tarde, no computador. Para além dos seus escritos, resta-me realçar a obra de grande valor que o meu pai deixa para as gerações vindouras: o Museu Rural de Salcelas, inaugurado no ano 2000. A ideia deste Museu nasceu num dia de 1976, em que o meu pai estava sentado num banco da Avenida dos Campos Elíseos, de Paris, recordando a sua terra natal, envolvido na forte emoção da saudade. Depois, foi graças aos emigrantes salcelenses em França que nasceu a Comissão de Apoio para a Criação do Museu – e aqui temos um dos elementos, Carolina Rodrigues, dessa Comissão de Apoio. Graças a esses emigrantes salcelenses em França, também surgiu a primeira solidariedade para os custos do terreno e da mão de obra para a construção do Museu. Tanto o espólio museológico, como o Salão polivalente nomeado António Cravo em 2017 e os restantes espaços do edifício, constituem um ponto de encontro entre os habitantes de Salcelas e os visitantes, trazendo uma mais-valia para a aldeia, enriquecendo o património de Trás-os-montes e de Portugal. Na transmissão dos avós maternos, também foram colocados ao meu pai, bons princípios, que lhe serviram de esteio ao longo da vida: os valores do trabalho bem feito, o sentido da responsabilidade e da honestidade, o respeito tanto pela natureza, pelos animais e também pelo ser humano. Graças à sua sensibilidade humanista, o meu pai foi impulsionador de muitas iniciativas para o bem da Comunidade no seu sentido mais lato, como eu já referi, tanto em França como também na sua região natal. Como homem, marido e chefe de família, o meu pai serviu de modelo para muitas pessoas que o tiveram como exemplo, seguindo os seus passos, e também outras pessoas seguiram os seus conselhos. Depois de ter nascido ‘zorro’, o meu pai muito lutou para ser reconhecido e conseguiu vencer, graças sobretudo ao apoio que sempre teve da minha mãe, ‘a menina dos 22 anos’, como ele lhe chamava. E para concluir, vou ler o poema que o meu pai dedicou ao seu próprio pai, o Senhor Engenheiro Valdrez, Américo dos Santos Moreira, parafraseando o grande poeta Camões: “Se lá no assento eterno onde subiste, memória desta vida se consente, repousa lá eternamente, que eu estou muito contente por tudo o que fiz na minha vida, embora o Senhor me desprezou, mas com toda a força que depois brotou na minha alma tão magoada, pelo desprezo que sempre me deu, a vida de inteligente foi ultrapassada. Jaimota, na minha infância, Jaime, depois na minha vida adulta, António Cravo, no universo da escrita”. . Muito obrigada pela vossa atenção. Paula Gonçalves Filha de António Cravo