Saúde: Envelhecer com dignidade: a urgência para não desviar o olhar_LusoJornal·Saúde·23 Dezembro, 2024 Dados os avanços da medicina ao longo dos últimos anos e tendo em conta o consequente aumento da esperança média de vida (envelhecimento demográfico), é natural que se torne cada vez mais premente a necessidade de pensar e, de alguma forma, garantir um envelhecimento digno e (tanto quanto possível) saudável para os nossos idosos. No entanto, talvez ainda vá havendo um certo “fechar de olhos” da nossa sociedade em relação a este assunto, tão delicado. A verdade é que o envelhecimento traz, naturalmente, mudanças cognitivas e emocionais que têm impacto no bem-estar, nas relações sociais, na tomada de decisões e no autocontrolo da pessoa idosa. Envelhecer implica, muitas vezes, ir perdendo competências que (enquanto “gente nova”) vamos assumindo como garantidas. A verdade é que não estão. Há faculdades que se vão esvaindo, fugindo por entre os dedos… dando lugar a uma enorme vulnerabilidade, (quase) comparável à de um bebé, de uma criança que, ainda sem autonomia, precisa de um adulto para a ajudar a regular, a crescer, a evoluir. Ser idoso traz consigo esse véu de fragilidade de quem procura refúgio na proteção e amparo do outro, de algum “outro” que lhe estenda a mão. Uma mão firme na empatia e paciência, na certeza de que esse “cuidar” será uma janela de esperança e bem-estar para quem, na margem dos anos, vai avançando paulatinamente no seu caminho. . Envelhecer implica, muitas vezes, ir perdendo competências que (enquanto “gente nova”) vamos assumindo como garantidas. A verdade é que não estão. Há faculdades que se vão esvaindo, fugindo por entre os dedos… Importa referir esta vulnerabilidade, no sentido de podermos compreender que é precisamente devido a este contexto de fragilidade e, muitas vezes de dependência, que surgem casos de abuso, de violência contra a população idosa. Um recente artigo do jornal Expresso revela que as estatísticas recentemente divulgadas pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima dão conta que a APAV apoiou, durante o ano de 2023, 1671 idosos. De acordo com a mesma fonte, mostram que, durante esse ano, a maioria das vítimas eram mulheres (76,8%), com uma média de idades de 76 anos. Quanto à relação com os agressores, a vítima é pai ou mãe em 32,2% dos casos e cônjuge em 22,1%. Embora haja ainda muito caminho a percorrer, estes números (com tendência para aumentar ao longo dos últimos anos) poderão também ser reflexo de uma certa consciencialização e consequente aumento da denúncia efetiva dos casos ocorridos – embora saibamos que, provavelmente, muitos (ainda) ficam no silêncio, por denunciar. Deverá existir investimento no reconhecimento do abuso, os profissionais de saúde deverão estar vigilantes e prestar atenção às circunstâncias em que o abuso ocorre e respetivos sinais de alerta. Na verdade, a comunidade em geral também necessita de ser mais informada (desde cedo) acerca do abuso, da violência – para que os serviços apropriados sejam desenvolvidos e adequados a estas necessidades. Abordar as razões que podem levar a uma atuação abusiva para com um idoso conduz a um sem número de desencadeantes que, generalizando, podem refletir questões de poder e controlo (necessidade de dominar), histórico de abuso (replicação de padrões relacionais aprendidos no passado), problemas de saúde mental (transtornos de personalidade, dependência de substâncias…), questões financeiras (usurpação de património), dinâmicas familiares disfuncionais ou mesmo falta de suporte social. . Estudos efetuados em várias culturas e comparativos entre países têm demonstrado que indivíduos de qualquer status socioeconómico, etnia ou religião são vulneráveis ao abuso. Seja ele: – Abuso físico – qualquer forma de agressão física (lesões sem explicação como feridas, nódoas negras ou cicatrizes recentes, queimaduras, fraturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, armações de óculos partidas); – Abuso psicológico – condutas que podem resultar em lesão psicológica, como manipulação, intimidação, ameaças, humilhações, chantagem afetiva, desprezo ou privação do poder de decisão (podem levar o idoso a manifestar-se emocionalmente perturbado, com medo de estar na presença de outras pessoas, com medo de falar e de participar em atividades diversas, com depressão); – Negligência – não satisfação de necessidades básicas, nomeadamente: negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitabilidade, segurança e tratamentos médicos (o idoso pode apresentar sinais de perda de peso, má nutrição, desidratação; falta de condições de higiene, como encontrar-se sujo ou sem banho tomado; com roupa ou agasalhos inadequados para a estação do ano); – Abuso emocional ou abandono – negação de afeto, isolamento e falta de comunicação; – Abuso financeiro – impedimento do uso e controlo do seu dinheiro, exploração financeira e chantagem económica (podem levar o idoso a tomar decisões abruptas sobre o seu próprio património, podem surgir levantamentos bancários significativos da sua conta, ou mesmo mudanças suspeitas de beneficiários de testamentos, seguros ou de bens); – Abuso sexual – qualquer tipo de atividade sexual não consentida, ou quando se trata de um idoso(a) incapaz de dar o seu consentimento (o idoso pode apresentar nódoas negras nos seios ou genitais, doenças venéreas, infeções ou hemorragias genitais sem explicação, roupa interior rasgada, manchada ou com sangue); – Abuso estrutural e social – falta de respeito e preconceito contra o idoso, traduzindo-se em atitudes de desrespeito, abuso verbal e emocional, ou seja, uma atitude social negativa para com o idoso. . Coloca-se então a questão: estará a nossa sociedade verdadeiramente preparada e capacitada para prevenir e intervir de forma eficaz nestes casos? Umas vezes sim, outras (provavelmente) não. É certo que a intervenção é complexa e deverá ter sempre em conta uma abordagem multidisciplinar, requerendo, na maioria das situações, uma intervenção efetiva das autoridades sociais locais, autoridade de saúde, polícia e agências de proteção da vítima. Talvez seja importante desde cedo educar, preparar e apoiar devidamente potenciais cuidadores da pessoa idosa e configurar estratégias de intervenção junto dos mais velhos – no sentido de capacitar esta franja da população, tanto quanto possível, num envelhecimento ativo e harmonioso. Talvez seja importante desde cedo educar, preparar e apoiar devidamente potenciais cuidadores da pessoa idosa e configurar estratégias de intervenção junto dos mais velhos… Em termos psicológicos e emocionais, a generalidade das pessoas idosas vítimas de crime e violência acaba por reportar sentimentos de medo, tristeza, raiva, solidão e humilhação. Consequentemente, estas vítimas sofrem um maior risco de depressão, isolamento, perda de autonomia e mesmo mortalidade. Por outro lado, sabendo que uma pessoa por quem nutrem carinho e amor sofre de violência, os/as familiares, os/as amigos/as e outras pessoas próximas podem experienciar problemas emocionais e, também, focar-se de tal modo no auxílio e nas necessidades da vítima, que descuram a sua própria saúde e bem-estar. Nesse sentido, é importante que saibam que podem procurar e obter algum suporte, nomeadamente na área da saúde mental, que lhes permitirá gerir as suas emoções (stress, ansiedade, angustia, medo) em momentos mais desafiantes, irá promover uma certa resiliência psicológica, diminuir a probabilidade de desenvolver ou aprofundar problemas de saúde mental, e (quando se justifique) orientar para outras entidades de apoio que possam ser identificadas pelo terapeuta como necessárias. Acredito, sinceramente, que é possível ir desenvolvendo em cada um de nós um olhar atento, de empatia e respeito por quem, muitas vezes “num sopro”, se passa a ver com lentes de inutilidade e desesperança. . Dra. Ana Paula Almeida Psicóloga Clínica Dra. Rosa Basto