Saúde: Os malefícios do álcool_LusoJornal·Saúde·3 Novembro, 2025 O álcool é um paninho de água quente: no momento adormece a ansiedade, melhora a tristeza quase de imediato e ajuda no sono. Surge como “automedicação” o tempo todo. Mas rapidamente as coisas mudam: afeta o corpo, o cérebro, a saúde mental e, claro, as relações. Afeta o fígado, o coração, aumenta o risco de vários cancros (como o cancro gastrointestinal e o cancro da mama). A ansiedade volta em força, sabota o humor (as pessoas ficam mais tristes e irritadas), prejudica a memória e o raciocínio (o cérebro literalmente encolhe) e destrutura completamente o sono. E o ciclo instala-se: preciso de beber cada vez mais para me manter bem e tenho cada vez menos controlo nisto. Antes de mais nada, o álcool é um acelerador do envelhecimento cerebral. Quando mais se bebe e quanto mais vezes se bebe pior. Quando há um abuso crónico assistimos à chamada demência ligada ao álcool, uma forma de deterioração cognitiva em que existem alterações da memória, dificuldade de concentração, lentificação do raciocínio, desorganização e mudanças de personalidade. O cérebro perde células e deixa de conseguir funcionar como antes. Mas não é só isto que me preocupa. O álcool interfere com a absorção de vitaminas – em especial da tiamina (a vitamina B1) mas não só – e pode isto rapidamente pode causar défices irreversíveis, mesmo que consigamos mais tarde tratar a dependência de álcool. A carência de vitamina B1, por exemplo, pode causar síndromes neurológicas como a encefalopatia de Wernicke e a síndrome de Korsakoff, que afetam gravemente a coordenação, a visão e a memória. Ao acelerar o envelhecimento cerebral, abre caminho e prepara o terreno onde o Alzheimer e outras demências progridem: mais neuroinflamação, mais stress oxidativo, agravamento de todos os fatores de risco bem conhecidos para a demência (HTA, Dislipidémia, Diabetes, Carências vitamínicas, Falta de preocupação com o estilo de vida em termos de sono ou alimentação, Sedentarismo, Isolamento – podíamos continuar). Quantidade Eu diria que a ideia principal que aplico na minha consulta aqui é: mais que o “muito” ou “muito frequente”, preocupa-me bastante o “porquê”. Alguém que bebe apenas um copo de vinho tinto, duas vezes por semana não parece grave. Mas se eu disser que esta pessoa bebe o mesmo copo de vinho, duas vezes por semana, “sempre que trabalha até mais tarde para conseguir dormir porque a cabeça não para” ou “sempre que discute com o marido para aliviar a ansiedade que sente” isto merece uma bandeira vermelha. O que eu penso é que é um padrão pouco saudável. Se a pressão no trabalho piorar ou os conflitos em casa se tornarem mais frequentes, a resposta natural será (rapidamente) os consumos aumentarem. Um copo à refeição Os muito reputados polifenóis. Os polifenóis são compostos naturais com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, nomeadamente sobre o coração. Mas a boa notícia é: estão presentes nas frutas vermelhas, na maçã e na pera, em vários tipos de chás, no azeite, na cebola roxa e no alho, nas nozes, amêndoas e avelãs, em vegetais como brócolos, espinafres e alcachofras e em várias ervas e especiarias, como o tomilho, orégãos, açafrão, canela e cravinho. Em suma: uma dieta variada e colorida é a melhor forma de obter polifenóis, sem os riscos associados ao álcool. A indústria, o marketing e a publicidade existe. Mas, mais do que o lobby, a mim preocupa-me a cultura. O álcool é o grande “elefante branco” na sala – não só é aceite, como é incentivado. Quem não bebe é automaticamente questionado: “vais conduzir?”, “estás grávida?”. Festejar implica brindar. É quase entendido como má educação não o fazer: “Não se brinda com água!”. Está em todo o lado – de jantares a eventos de trabalho. Esta é a mesma cultura que normaliza o abuso. Fingimos que não reparamos, olhamos para o lado, desvalorizamos. Mais que a regulamentação, a educação tem que ser um pilar: pessoas informadas tomam melhores decisões. . O consumo excessivo de álcool aumenta o risco de vários cancros, incluindo o cancro mama e do trato gastrointestinal, entre outros. . Queremos estar muito mais alerta para as bandeiras vermelhas: – Beber muito – a quantidade importa. – Beber frequentemente – quando o álcool passa a fazer parte da rotina diária, mesmo que “em pequenas doses”. – Beber por maus motivos – o álcool nunca deve servir como automedicação ou tampão para o stress, o dormir melhor, o esquecer as preocupações ou lidar com emoções difíceis. – Beber sozinho – quando o prazer social dá lugar à necessidade individual. – Quando há necessidade de apresentar justificações – “é só um copo”, “toda a gente bebe”, “eu controlo” – são frases que mascaram um padrão de dependência a instalar-se – Negar as consequências – quando a pessoa se recusa a reconhecer a possibilidade de haver efeitos físicos, na cabeça, no trabalho ou nas relações e o consumo continua. O álcool continua a ser o grande elefante branco na sala – banal, aceite, celebrado. É por isso mesmo que o tema não pode sair da ordem do dia. . Dra. Maria Moreno Médica psiquiatra @mariamoreno.medicapsiquiatra