Um livro de Patrick Gautrat – Uma Europa em crise: Pétain, Salazar e De Gaulle

“Pétain, Salazar, De Gaulle – Affinités, ambiguïtés, illusions (1940-1944)” de Patrick Gautrat, antigo Embaixador de França em Portugal (2004/2008) e com prefácio de Yves Léonard, acaba de chegar às livrarias francesas.

Em 1940, poucos adivinhariam que os avanços fulgurantes do aparentemente invencível exército alemão ao serviço do III Reich seriam, quatro anos mais tarde, um pesadelo brutal, mas, por sorte, passageiro. Tudo indicava, no dealbar dessa dramática década de 1940, que o mundo se tornaria num imenso planeta nazi-fascista. Os alemães conquistaram sem problemas a Europa de leste e a França, que apesar de possuir, considerava-se então, o exército mais poderoso do mundo, não evitou a derrota mais humilhante da sua História, sendo consequentemente dividida em duas (a França ocupada e a França de Vichy). A Inglaterra estava de joelhos e Londres coberta de escombros. O Japão nacionalista fazia o que queria na Ásia. E, para tudo piorar, devemos acrescentar o pacto germano-soviético assinado entre Molotov e Ribbentrop e o isolacionismo voluntário dos EUA… Tudo parecia a favor de um Novo Mundo fascista.

Essa imensa tragédia das democracias liberais, consequência de (mais) uma crise do capitalismo – a Grande Depressão de 1929 – e de um conflito mortífero – a Grande Guerra de 1914/18 – teve então como corolário a ascensão de uma multitude de regimes fascistas na Europa. O ultranacionalismo e as teorias de supremacia racial, usando a velha tática do bode expiatório (judeus, ciganos, comunistas…), impregnaram-se no tecido social de várias nações europeias; começando em 1922 pela Itália de Mussolini, o fascismo propagou-se como um tumor castanho pela Hungria, Roménia, Croácia, Alemanha, Espanha e, claro, Portugal (1926).

É a ligação entre o Portugal dos anos de 1940 a 1944 – o auge salazarista cujo poder se alicerçava numa falsa neutralidade, refém simultaneamente da velha aliança luso-britânica e da proximidade ideológica com as forças do Eixo – e o recém-instalado regime de Vichy, encabeçado por Philippe Pétain, que Patrick Gautrat estuda neste livro de 200 páginas.

O novo Estado francês sedeado em Vichy e assente na divisa “Travail, Famille, Patrie” – muito próxima da trilogia salazarista de “Deus, Pátria, Família” – foi recebido com alegria em Lisboa, essa cidade que, nas palavras de Saint-Exupéry em 1940, era “uma espécie de paraíso claro e triste”. As óbvias afinidades entre as ideologias em vigor em Portugal e em França levaram, por esses anos, a um adensar das relações diplomáticas entre os dois países, atingindo proporções raras. Até então a estranha ausência da diplomacia francesa na política externa portuguesa explicava-se pela ancestral hegemonia britânica e pela vizinhança espanhola, não só geográfica, mas igualmente ideológica, visto Franco ter vencido a guerra civil de 1936/39 e ter fundado também um regime fascista. Poderá dizer-se que Portugal não precisava da França democrática do tempo do Front Populaire.

A elite lisboeta viu com bons olhos a instauração do regime de Vichy e este aproveitou intensamente a experiência portuguesa. Para a Direita conservadora francesa, Portugal era uma “ditadura temperada”, uma “ditadura da inteligência” encarnada no monge Salazar, o “ídolo de Vichy” como disse De Gaulle em 1944. “Salazar”, escrevia-se no “Le Petit Journal” em julho de 1940, “deu ao seu país, ao seu povo, o gosto da ordem e da grandeza ao impor-lhes uma reforma audaciosa baseada na organização do trabalho, no respeito pela família e no amor pela pátria”.

E, nesses tempos de delírio fascista, tudo lhes parecia possível. De facto, findo o pacto de não-agressão entre Estaline e Hitler, as tropas nazi-fascistas avançaram a toda a velocidade pela estepe russa (cometendo genocídio atrás de genocídio) e o colapso britânico julgava-se inevitável. A vitória final do Eixo parecia próxima e, dada esta conjuntura, o regime de Vichy parecia ter vindo para ficar.

Todavia, com a reviravolta na guerra – o desembarque aliado no norte de África, a derrota nazi em Estalinegrado, a recuperação do exército vermelho e a entrada nos EUA na guerra após o ataque japonês a Pearl Harbour – os laços diplomáticos entre Lisboa e Vichy esmoreceram-se. Ao tornar-se claro que as forças do Eixo perderiam a guerra, a France Libre no exílio ganhou relevância e Charles de Gaulle tornou-se uma figura incontornável.

Salazar, lutando pela sobrevivência no mais que certo mundo pós-fascista, trocou então a “política de afinidade” que mantinha com Vichy por uma contraditória “política de ambiguidade”, mantendo relações paralelas com a France Libre e De Gaulle, embora não os reconhecendo oficialmente. É o “tempo das Ilusões” tão bem tratado por Patrick Gautrat e que garantiu ao fascismo português ser tolerado pelos vencedores e esclerosar-se no poder até ao 25 de Abril de 1974, não sem antes provocar uma crise demográfica e emigratória, além de causar milhares de mortos na Guerra Colonial e amputar o futuro das ex-colónias.

Um livro que, como todos os bons livros de História e análise historiográfica, nos permite, através das fontes portuguesas e francesas, mas também graças à experiência diplomática do seu autor, usar o passado para melhor compreendermos o presente e nos precavermos para um futuro incerto. Hoje, após a Grande Recessão começada em 2008, vemos novamente partidos fascizantes e abertamente fascistas a tomarem o poder em muitos países europeus, seja sozinhos, seja em coligação com partidos conservadores. Essas forças herdeiras do fascismo dos anos 30 e 40 – que medram graças à arrogância com que as nossas elites liberais tratam as classes populares insatisfeitas – usam para tal a mesma retórica nacionalista, racista e anti-imigração de outrora.

Um livro que analisa esse mundo de fascismos instituídos e guerra que ainda nos é tão próximo através da relação entre uma França derrotada e humilhada e um Portugal decadente e pobre. Portugal que para os Franceses da época, como ainda hoje, nas palavras de Patrick Gautrat, estava “rodeado de uma aura de mistério algo exótico. Nação amiga e pequena irmã latina que apreciávamos pela doçura da vida, o clima agradável e a população acolhedora”. Há coisas que nunca mudam… e esse é o grande perigo.

 

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