Opinião: Está tudo a arder, mas não se deve apagar


Preparei-me para ir de férias e até tinha previsto um percurso muito agradável, pelo menos em teoria, mas não correu nada bem. Até pelo contrário!

Iniciei a minha viagem no dia 16 de agosto, partindo de Lyon para a região da Guarda, de onde sou originário. Pelo caminho, alguns amigos alertaram-me pelas redes sociais que havia vários incêndios florestais na nossa região. Mas eu minimizava as notícias, pois já tendo vivido os incêndios dos anos 2013 e 2017 de perto e de longe, pensei “são sobretudo fogos na serra”.

Quando cheguei ao termo da minha viagem, no domingo dia 17, pelas quatro da manhã, ainda pairava no ar um forte cheiro a madeira queimada e ainda vi alguns cepos de pinheiros, que ainda deitavam “fagulhas incandescentes” para o ar.

A paisagem que aparecia em frente dos faróis do meu carro, era desoladora. Estava tudo queimado, estava tudo negro e assim percorri a distância entre Celorico e Trancoso, e depois até à minha pequena aldeia de Queiriz, passando pela serra do Pisco, que agora estava totalmente coberta de cinzas.

Quando a luz do sol apareceu nesta manhã de domingo, dia 17 de agosto, o choque ainda foi mais desolador e difícil de suportar. O fogo tinha chegado mesmo ao interior das terras agrícolas que circundavam as aldeias de Queiriz, Casal do Monte, Aveleiras, Carapito, num raio de 10 quilómetros ou mais, queimando tudo. A destruição era quase total. Algumas casas de habitação desapareceram, assim como muita vegetação florestal.

As lágrimas vieram-me aos olhos, pois as paisagens que eu conhecia, certamente que não vou voltar a vê-las, visto a minha idade. As florestas de pinheiros com dez e quinze anos de idade, eram agora simples carvões. Toda a vegetação serrana, urzes, giestas, rosmaninhos, Belaluz Sargaços… até das silvas tive pena! Tudo tinha desaparecido, transformados em um manto de cinzas, que tinha cerca de trinta centímetros de espessura em certos lugares, o que traduzia a espessura da vegetação queimada nesses sítios.

A floresta tinha desaparecido, o fogo foi intenso, e movido pelo vento deslocava-se por vezes a mais de quatro quilómetros por hora. Por vezes as pessoas puseram as suas vidas em perigo pois a violência e velocidade era superior ao que humanamente era suportável.

Durante esse domingo, tive a ocasião de ouvir várias versões dos factos que se tinham por ali passado. À saída da missa, nos cafés, no terreiro da aldeia…

Mas qual não foi a minha surpresa quando ouvi muita coisa que era contraditória, surpreendente, situações que me descreveram, que não deviam existir e que provavelmente favorizaram este desastre, mas que merece o nome também de tragédia humana, ecológica e económica.

Um proprietário de terrenos agrícolas, meu conhecido, e ainda com os olhos vermelhos do fumo, disse-me soluçando: “Vi arder o fruto de vários anos de trabalho. Fiquei sem um pinheiro, as vinhas, os olivais e até algum milho, ardeu mesmo na terra, pois já estava com as canas secas. O que é que eu agora vou fazer? Replantar tudo? Já não tenho idade para isso. Foi e é uma tristeza total. Vou morrer com estas imagens, as deste inferno dentro da cabeça”.

Um outro, falou-me da mesma situação, mas acrescentou que colhia cerca de trezentos litros de azeite por ano nas suas propriedades e agora ficou sem nada. “Uma oliveira leva quase dez anos a dar o seu melhor rendimento. Já não será nos meus dias que vou de novo ver isso”.

Depois de ouvir e de participar em inúmeras conversas, onde a desolação, a perda, o prejuízo, de que a população e os proprietários foram alvo, chegaram depois as críticas e também o quererem saber porque tudo isto aconteceu. O que é que foi feito ou não foi feito, para que estas situações tivessem acontecido e também porque se estão repetindo? Quem poderá ter as responsabilidades? Ninguém. “A culpa vai morrer solteira”, dizem.

Foi então aqui que eu me apercebi que algo não estava a correr bem. Não era só a fatalidade, não eram só obras do diabo, mas as dos homens, mas se calhar inspirados por ele!

Havia outras coisas a pôr em foco e tentar perceber porque é que chegamos a estas situações de uma total descoordenação dos nossos serviços da proteção civil, bombeiros e outros mais. “Apagar o fogo, mas depois de tudo ardido”… será esse o lema?

“Sabe o que me disseram a mim, os bombeiros? Que não tinham autorização da Proteção Civil para deitarem água para apagarem o fogo” disse um dos meus conterrâneos com o desespero na voz!

“Andavam aqui a passear os camiões, estrada acima, estrada abaixo, com os autotanques cheios, e não faziam frente ao fogo com todos estes meios, para tentarem travar o avançar das chamas. Não tinham ordens para apagarem a vegetação, apenas para protegerem as casas, diziam eles. Incrível, mas foi esta a verdade”.

Mais tarde, alguém me informou que foram vários os casos onde o fogo poderia ter sido extinto ou controlado, na passagem de um caminho ou de uma estrada ou ainda num descampado com pouca vegetação. Mas não. Não havia a vontade de o fazer, nem passando por cima das famosas ordens e deitarem água fazendo frente aos incêndios.

Descobri então, mais tarde, que existem quatro grandes instituições – a AGIF, a ANPC, o ICNF e finalmente a GNR – que devem coordenar as suas ações para o ataque aos incêndios, mas não podemos esquecer que depois ainda existem quarenta e oito organizações, não podemos deixar de falar deles, mas são estas as mais relevantes – os Bombeiros, a ANAC que recebe ordens não se sabe de quem, talvez o que foi dito pela Proteção Civil, mas que existem só quase no papel pois presencialmente, no terreno, não há testemunho da sua existência. Despesas devem dar, devem receber subsídios, verbas para funcionarem, contando despesas de salários, de transportes e com instalações, claro. Mas obras, ações não se vêm.

Tudo isto deve fazer com que, muita gente espalhada pelo território de Portugal recebe bons salários, pois devem ser todos engenheiros, técnicos especializados e só Deus sabe o que mais.

Falando dos meios aéreos, que segundo se ouve na televisão, ganham por cada descarga de água pequenas fortunas, a eficácia das descargas e das rotações não chegam por vezes a acalmar o fogo. Mas vá lá… esses têm as ordens de deitarem água. As vezes para nada, mas…

Um Presidente de Câmara disse-me ainda, numa conversa, que ele próprio, vendo o património dos seus administrados partir em fumo, e com riscos mesmo para a suas vidas, ele não tinha palavra a dizer. A Proteção Civil é que tem a autoridade da coordenação à distância de tudo, dos meios aéreos e dos bombeiros. E o que é trágico-cómico é que temos a GNR no terreno, que faz respeitar a regra e não deixa deitar água e até ameaça de fazer participações às autoridades hierárquicas. Tristeza! É mesmo de rir à gargalhada com vontade de chorar.

Mas esses senhores que podem estar longe e estão, e que não estão no terreno, não podem ver como fazer frente aos incêndios e elaborarem estratégias de ataque ao fogo. Depois de tudo ter ardido, e que são horas de angústia vividas, e de grandes riscos de vida, depois não vale a pena virem dar ordens e darem entrevistas para a televisão e coordenarem ações para nada. O fogo já não lavra e por vezes até se extinguiu quase sozinho.

Tenho aqui a frisar e a louvar as ações de todas as populações, aldeias, vizinhos, dezenas de pessoas de todas as idades que frente à inação dos Bombeiros, entraram pelas matas, pelas serras e “vai de apagar”! E foi com os seus meios quase insignificantes que ainda limitaram certas perdas, como um aviário e várias culturas que estavam em risco de também desaparecerem, como pomares, entre outros. As imagens que podem ser recolhidas na minha região e em outras regiões hoje, são as de um autêntico cenário de apocalipse ou de bombardeamento. Talvez as bombas só lavrariam mais a terra, mas o resto foi o que aconteceu. Queimou tudo…

Durante quase três semanas não havia outro assunto de conversa na aldeia. A tristeza pelos bens perdidos estava patente em todos os rostos. Este ano, a Festa da padroeira da aldeia foi anulada pois a alegria de se festejar não era nenhuma, diante de tanta desolação e destruição.

O resultado é que Portugal arde… e bem. A desertificação do território faz com que a natureza esteja em liberdade total. Os programas de limpeza dos terrenos, bermas das estradas, são inúteis ou insuficientes, sejam feitos por parte de quem os faz, pois limpa-se em abril e já está tudo outra vez cheio de ervas, silvas e outras vegetações em junho e julho. E depois aparece um deficiente mental, e muitas vezes como eles dizem, “para ver os Bombeiros atuar”, incendeiam as serras, escolhendo precisamente dias de vento e de grandes calores e sempre pela noite. São colocados em prisões, mas ao fim de uns meses voltam para a rua para esperarem pelo próximo verão.

Este ano, após os incêndios, eu pude ver certas partes territoriais da minha serra e da região, que já não via há mais de 15 anos. Ficou tudo limpo. Estábulos perdidos pela serra e caminhos que serviam em tempo para a pastorícia e que a vegetação tinha engolido, agora são visíveis. Abrigos e até casas de pequenas quintinhas onde famílias viveram certamente em tempos passados. Os muros que dividiam as propriedades, vêm-se bem e é hoje bem mais fácil verificar os marcos e preencher o famoso Bupi.

Há quem diga que isto foi tudo fogos postos. Acredito que alguns foram, mas que têm uma finalidade, que é alimentar o negócio da madeira ardida e agora fala-se também de limpar a terra para se explorar com minas de Lítio, pois são aqui assinaladas grandes quantidades e precisamente, segundo dizem, onde houve estes grandes incêndios.

Somando bem toda a área ardida até ao fim de agosto, são cerca de um quarto de milhão de hectares, e para se renovar esta vegetação, serão precisos, no mínimo quatro a cinco anos, e o dobro do tempo para certas espécies, tipo pinheiros, carvalhos, castanheiros e outros mais. E tudo isto, se as condições de replantação, e o semear forem postas em ação pelos proprietários e também contando com ajudas dos Governos. Poderia haver, desde já, um plano para tentarem limitar estes efeitos da desertificação das serras onde por agora só se vêm pedras. Replantar, mas com a consciência de bem fazer.

Lanço aqui um apelo aos nossos governantes, para que, para o futuro, tomem medidas mais eficazes e que os erros que cometeram hoje, sejam benéficos e tomem as decisões certas nos momentos certos. Prevenção eficaz, prevenção durante os meses de verão… espalhar as tropas ou outras incorporações e até voluntários remunerados ou não, pelas serras, em vigilância extrema e com meios de intervenção rápida no terreno e pelos ares.

Se um posto de vigilância humana noturna existisse na serra, teriam visto o condutor de uma moto deitar o fogo com garrafas de gasolina incendiando a serra em algumas horas.

Só são três meses durante o verão, e onde tudo deve estar em alerta máxima, a população, mas também todo o Governo.

Pensarem em férias e em boas “bejecas”, viagens… tudo bem, mas deixem a casa bem guardada para que o “diabo do fogo não acabe por dar mais umas facadas na nossa massa verde florestal.

Pensem nisto para o ano 2026.

Portugal é tao lindo vestido de verde, não o deixem vestir de luto e mais pobre. Os turistas assim vão fugir e não nos irão visitar, como fugiram da Grécia e de outros países. Lembrem-se disto.

Todos juntos poderemos vencer esta calamidade. Tratar primeiro da prevenção e depois das ações de combate eficaz.

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Jorge Campos

Conselheiro das Comunidades Portuguesas eleito em Lyon/Marseille