Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Sessão Solene Comemorativa do 25 de Abril

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Transcrevemos na íntegra, a intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na sessão solene comemorativa do 25 de Abril, que relacionou com emigração e Comunidades, proferido na presença do Presidente da República, do Primeiro-Ministro e demais membros do Governo, dos Presidentes dos Tribunais Superiores, dos Deputados e de Capitães de Abril, entre vários convidados.

 

A celebração do 48º aniversário do 25 de Abril ocorre num contexto europeu e internacional particularmente dramático. A guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia constitui a mais grave ameaça, em décadas, à segurança europeia e à paz mundial. No seu posicionamento nacional e no quadro das organizações a que pertence, designadamente a União Europeia, as Nações Unidas e a NATO, Portugal tem pugnado pela condenação do regime agressor e o apoio à nação agredida e pela exigência de que o agressor cesse as hostilidades, de forma que se possa salvar vidas e reconduzir o diferendo ao plano político-diplomático onde se concerte solução duradoura. Desejamos o melhor sucesso às diligências que esta semana realiza, para o efeito, o Secretário-Geral das Nações Unidas.

Em tempos tão difíceis, as características essenciais da nossa pátria, como uma democracia madura, um país seguro e pacífico e uma sociedade coesa e aberta ao Outro, emergem como um valioso património e um exemplo internacional. Graças à revolução libertadora do 25 de Abril e ao modo como fomos desde então construindo uma democracia pluralista que a todos procura integrar, sem admitir fraturas de base religiosa, territorial ou identitária, não tem cessado de crescer o reconhecimento internacional da capacidade portuguesa de comunicar com todos, de fazer pontes entre realidades distintas e de ser uma nação europeia aberta ao mundo. Em tempos de fechamento e ódio, a abertura aos outros de um país como o nosso, onde vivem atualmente cidadãos de quase todas as nacionalidades sem que isso constitua qualquer problema, onde qualquer confissão religiosa é bem-vinda e que se sente tão à vontade a lidar com os seus parceiros europeus como na relação com África, as Américas e as várias regiões da Ásia, essa abertura é um bem precioso que devemos acarinhar.

Muito se deve às instituições e agentes políticos do regime democrático. Mas vai mais fundo, pois tem raízes na experiência multissecular dos portugueses e, em particular, na vivência da emigração. Como dizia meu mestre Vitorino Magalhães Godinho, a emigração é, desde o século XV, uma constante estrutural da nossa história. Mesmo na época do império, as gentes que saíam do território peninsular não paravam nos seus confins, antes iam além e assim se estabeleciam, se misturavam, se tornavam, não forâneos, mas “filhos da terra”, tão bem estudados pelo saudoso António Manuel Hespanha.

Na idade contemporânea, o contributo das vagas migratórias para o Brasil, os Estados Unidos, a França, a Alemanha e tantos outros destinos, foi determinante para o desenvolvimento económico e a transformação social das regiões de origem. Continua a sê-lo, hoje, e de várias maneiras: através do consumo e das remessas, captando e realizando investimentos, criando um nicho próprio e valioso para certas exportações nacionais, servindo de veículo privilegiado para encontros de costumes, tradições, saberes e maneiras de ser.

A capilaridade social desta experiência de mobilidade e migração vai formando o que, como sociólogo, tenho designado como um cosmopolitismo ao rés-do-chão da vida quotidiana, que abre Portugal ao mundo e tende a tratar o estrangeiro como comparte da mesma humanidade, igual em direitos e responsabilidades.

Eu sei que, em razão da importância para o país das comunidades residentes no estrangeiro, lhes dedicamos o 10 de junho, quando muito apropriadamente celebramos o poeta errante Luís de Camões, o qual dizia ter deixado “a vida pelo mundo em pedaços repartida”. Mas creio que nos falta ainda evocar o elo essencial entre a democracia e as comunidades, entre as comunidades e a democracia; e não há para fazê-lo melhor data, na sequência das efemérides, do que o dia 25 de abril. E muito em particular este 25 de abril de 2022, em que o Parlamento acaba de eleger para presidir-lhe um deputado eleito pelo círculo de Fora da Europa.

É muito o que devemos às comunidades, no reconhecimento internacional de que gozamos como país pacífico, seguro, humanista e cosmopolita. Cada concidadã ou concidadão, não importa onde esteja, é um exemplo vivo das qualidades de trabalho, entreajuda, sociabilidade e civismo que a justo título se associa à nossa gente. Sendo mais de cinco milhões e residindo em mais de 180 países, a influência que assim projetam os portugueses e lusodescendentes é verdadeiramente global. As comunidades que formam são uma demonstração concreta de quão falso é o mito da contradição entre identidade originária e integração, sobre que repousam variadas estirpes de xenofobia. De facto, as comunidades portuguesas são um exemplo claro de dupla vinculação harmoniosa: de uma banda, ligação profunda a Portugal e às respetivas regiões e localidades; da outra, inserção plena nas sociedades de acolhimento, com respeito escrupuloso pelas suas leis, usos e costumes.

Essas características estão enraizadas na história da emigração. Mas a instauração da democracia política e o desenvolvimento que ela permitiu vieram conceder-lhes uma nova dimensão. Porque a realidade social e cultural do país se transformou e mudou consequentemente a imagem que os outros fazem de nós; porque a descolonização, primeiro, e depois a integração europeia alteraram substancialmente a definição dos circuitos e modalidades de mobilidade internacional em que os portugueses se inscreviam; porque a escolarização maciça se traduziu também em novas oportunidades de integração laboral e social no exterior; e tudo isto ajudou a diversificar os perfis da emigração, a composição social dos migrantes, as condições de sucesso de filhos e netos nas sociedades de acolhimento, a conquista progressiva de posições de alta responsabilidade nas empresas, nas academias, nas instituições públicas e nas organizações internacionais, assim enriquecendo as comunidades e potenciando a sua contribuição, quer para os países de destino, quer para a pátria portuguesa.

Porém, se a mudança social e política associada ao processo de democratização do nosso país, no pós-25 de Abril, influenciou sobremaneira o estatuto e os percursos dos residentes no estrangeiro, também estes foram decisivos para o sucesso da democracia e do desenvolvimento nacional. Várias das “portas que Abril abriu” foram abertas pelos migrantes. Basta atentar na forma como, entre 1974 e 1976, um milhão de portugueses retornados de África (em condições tão difíceis e traumáticas) e da Europa se integrou plenamente na sociedade portuguesa e aí recuperou a economia local, sem nenhuma fratura. Esses emigrantes retornados são um dos alicerces do regime saído do 25 de Abril; e afirmemo-lo, alto e bom som, no dia de celebração.

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Excelências,

O laço entre comunidades e democracia não seria, contudo, o que é sem a viragem que a Revolução dos Cravos operou na política pública para os portugueses vivendo no estrangeiro. Tal viragem começou, logo em 1975, com a criação da Secretaria de Estado da Emigração, posta ainda no Ministério do Trabalho, prosseguiu cinco anos transatos com a Secretaria de Estado das Comunidades e, de seguida, diferentes governos foram aperfeiçoando as medidas até erguerem uma verdadeira política para a diáspora.

Ora, só há uma palavra para nomear o fundamento desta política, a palavra democrática por excelência: cidadania. A consagração, pela Constituição de 1976, da igualdade de direitos dos compatriotas residentes no exterior, e as respetivas consequências – a institucionalização do ensino português no estrangeiro, o apoio ao associativismo, o nascimento do Conselho das Comunidades Portuguesas, a extensão da nacionalidade originária aos lusodescendentes – são uma trave-mestra do nosso regime democrático; e, insisto, não devemos ter pejo em dizê-lo.

A expressão mais alta é a participação cívica e eleitoral. A criação dos círculos de emigração para a Assembleia da República e o alargamento do direito de voto às eleições presidenciais e europeias foram passos fundamentais para que a nossa democracia fosse de todos nós. A última barreira foi quebrada em 2018, quando neste Parlamento, por unanimidade, o recenseamento automático foi expandido aos portadores de cartão de cidadão com morada no estrangeiro, fazendo de um milhão e seiscentos mil deles eleitores de pleno direito. O efeito não demorou: o número dos que votaram, nos chamados círculos da emigração, nas eleições de 30 de janeiro de 2022 foi seis vezes superior ao que se registara em 2015. E vai continuar a aumentar, assim nos aproximando da ambição de qualquer democracia, que é tratar por igual todas as pessoas como cidadãos, quer dizer, sujeitos do seu destino.

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Senhor Presidente, senhor Primeiro-Ministro, demais Autoridades, caras e caros colegas Deputados,

O que até agora carreei, em abono da centralidade das comunidades residentes no estrangeiro na radicação da democracia portuguesa, já seria razão bastante para louvá-las. Mas permiti que vá mais longe, para justificar trazê-las a terreiro no dia em que valorizo a imagem de Portugal no mundo, como fazedor e atravessador de pontes.

Nos últimos anos, primeiro digamos que a medo, por via de casos isolados, depois gradualmente numa corrente, os lusodescendentes vão alcançando funções de responsabilidade nos municípios, regiões e Estados de que são habitantes: vão ocupando postos dirigentes nas administrações públicas, nos sistemas de justiça, na organização de escolas e universidades; vão-se tornando vereadores, presidentes de câmaras municipais, membros de assembleias estaduais, deputados a parlamentos e congressos nacionais, membros de governos. O número dos que chamamos, e bem, luso-eleitos é já hoje da ordem das centenas, e as redes que vão formando, juntamente com as de estudantes e profissionais pós-graduados, de câmaras de comércio, de conselheiros das comunidades, constituem um capital preciosíssimo de que o país dispõe, para alavancar e projetar a sua influência no mundo – essa influência cuja natureza benfazeja eles, agindo, demonstram quotidianamente.

A democracia que agora celebramos alimenta-se também desta seiva: a participação cívica e política dos portugueses residentes no estrangeiro nos assuntos públicos quer da pátria portuguesa quer da pátria de acolhimento.

Falo de todos eles. Dos ilustres emigrantes que hoje nos dignificam à frente das Nações Unidas e de outras organizações internacionais, no mundo económico e profissional, nas artes, na Igreja, no desporto, no voluntariado. E, sobretudo, daqueles em cujos ombros repousam – e são os milhões de homens e mulheres comuns que partiram, em busca de uma vida um pouco menos difícil, e de que tão bem falam os romances de Camilo, Ferreira de Castro, Olga Gonçalves, Dulce Maria Cardoso, ou o cinema de Miguel Gomes e Ruben Alves.

Ao contrário da ditadura, a democracia não esconde os problemas. As tarefas são várias: como estancar a sangria de muitos dos nossos jovens mais qualificados, como apoiar o seu regresso a Portugal, como servir melhor as comunidades no estrangeiro. Mas compreender que estas comunidades são parte indispensável da nação que formamos, um recurso essencial para a nossa influência do mundo e um exemplo vivo de que identidade e integração, multiculturalidade e coesão são polos que se complementam e não opostos que se digladiem, compreendê-lo é a melhor maneira de enfrentar os problemas: os problemas dos portugueses, de novo às voltas com as consequências económicas da guerra, e os problemas do mundo, carente de mais pessoas como nós, amigas da paz.

Foi o 25 de Abril que investiu os portugueses residentes no estrangeiro como cidadãos de corpo inteiro. Merecem, pois, ser finalmente tema principal do discurso de um presidente do Parlamento, na sessão solene comemorativa da libertação.

A revolução que encheu de cravos os canos das espingardas fez deles e dos seus descendentes membros plenos da comunidade cívica que é a nossa pátria. E assim Portugal alargou horizontes e fortaleceu-se no seu papel mais frutífero no concerto das nações: como berço e casa de gente a seu modo cosmopolita, pacífica, humanista, solidária, aberta aos outros, calcorreando pelo mundo e em todo o lado derrubando muros e erguendo pontes.

Também por isso, Capitães de Abril, por terdes iniciado o movimento que permitiu a Portugal construir uma democracia onde cabem todos os portugueses, independentemente do lugar onde nasçam ou residam, muito obrigado! Do fundo do coração, muito obrigado!

 

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LusoJornal