Nuno Gomes Garcia conversa com Maria José da Silveira Núncio

Maria José da Silveira Núncio é socióloga, professora universitária e colabora frequentemente em vários meios de comunicação portugueses como especialista na área da família e da promoção do bem-estar. Já escreveu livros de autoajuda, obras académicas e romances. E será de um romance que falaremos hoje.

Em “Brincadeiras de irmãs” desvendam-se os segredos mais obscuros e a total desestruturação de uma importante família da sociedade portuguesa, cujo pater famílias, o chefe de família, foi professor universitário e Primeiro Ministro, uma das figuras mais proeminentes de um grande Partido. A família, apesar da podridão sulfurosa em que está mergulhada, vive para as aparências, embora mesmo essas se deixem corroer pouco a pouco pela luta fratricida entre duas irmãs que se odeiam e se amam simultaneamente. A mais velha, uma mulher solitária que se deixa perder no álcool e nas esporádicas aventuras sexuais, e a mais nova, bonita e inteligente, mas também fria e calculista, que seguiu os passos paternos na política, chegando a uma posição de topo no Partido. É a morte do pai que vai colocar à vista de todos as brechas que fraturam a família.

Assim, recorrendo a uma série de vozes narradas na primeira pessoa, Maria José da Silveira Núncio vai desconstruindo essa família, entregando as peças soltas ao leitor para que seja ele a montar o puzzle e a descobrir qual será o terrível segredo que fez com que irmã mais nova morresse “aos seis anos, quatro meses e três dias”. Um livro que vale pelo seu todo e que nos consegue surpreender da primeira à última página.

 

Este livro, que é de ficção, enquadra-se bastante num dos seus temas prediletos, as questões em redor da família, e sobre as quais já escreveu algumas obras de não ficção, nomeadamente de autoajuda. Dito isto, se a Maria José tivesse a possibilidade de ensinar estratégias de coaching familiar a estas duas irmãs, o que lhes diria?

Diria muita coisa, mas primeiro ensinaria essas estratégias aos pais, porque tudo o que acontece nesta história decorre de uma visão distorcida acerca do que devem ser as relações dentro da família e acerca do que deve ser a própria gestão da comunicação e do silêncio dentro da família. Primeiro de tudo trabalharia com estes pais e depois evidentemente trabalharia com as filhas. A família é uma instituição que está rodeada de mitos, como a família sendo o lugar protetor, que nos defende, a ideia da família-fortaleza… Quando na verdade isto é muito mais do domínio do dever ser do que do domínio do que é de facto, havendo muitas situações em que a família é tudo menos isso. Isto também leva a outro aspeto, que eu explorei um pouco no meu anterior romance, “O que se cala é como se não existisse”, que tem exatamente que ver com a questão de ser muitas vezes a família um espaço de grande violência que ainda por cima é uma violência que é vivida na intimidade, não é facilmente escrutinável pelo resto das pessoas. Nesse sentido, a violência é sofrida em silêncio. A história destas duas irmãs anda claramente em torno disso. Sendo uma história de ficção replica aquilo que são muitas realidades. Por outro lado, o Nuno disse também que estamos a falar de uma família socialmente prestigiada. Isso também foi intencional no sentido em que muitas vezes pensamos que certos fenómenos ligados à violência familiar ou à violência conjugal estão circunscritos a determinadas camadas da população… quando na verdade isso não acontece de todo e nós estamos a falar de fenómenos socialmente transversais. Lá está, é a questão da visibilidade, da maneira como as pessoas têm coragem para assumir o que acontece dentro das suas famílias. Às vezes é mais difícil no seio dessas famílias socialmente prestigiadas do que noutras famílias, pois têm uma imagem a defender.

 

Então tudo isso que disse significa que, por um lado, aquela ideia que temos de que a família é um derradeiro refúgio, que nos rodeia de harmonia e paz, e, por outro, a ideia de que a violência, a sexual nomeadamente, apenas afeta as famílias mais pobres, tudo isso não passam de mitos?

Exatamente. São dois mitos e de naturezas diferentes. O primeiro tem que ver com toda a evolução daquilo que foi o nosso próprio conceito de família e que, ao colocar no centro a questão das emoções e dos afetos, criou de facto como que uma categoria homogénea das famílias, quando, na verdade, nós não temos uma família, mas sim várias famílias. E nem todas as famílias conseguem ser esse espaço protetor e esse espaço afetivo onde nós crescemos e nos realizamos emocionalmente. Por outro lado, tanto a investigação sociológica como as conversas que vou tendo no meu trabalho com famílias me têm levado a perceber que as mais diversas formas de violência, a sexual, a física, a psicológica, sucedem dentro das famílias qualquer que seja o seu estrato social. É só mesmo uma questão de visibilidade. Isto é quase um paradoxo, mas é mais fácil estes fenómenos serem visíveis nas famílias socioeconomicamente mais desfavorecidas ou em situação de maior vulnerabilidade. Nas outras famílias, justamente por não serem acompanhadas por serviços sociais, estes fenómenos são muito vividos na intimidade.

 

E, Maria José, quais são os mecanismos psicológicos que conduzem a essa espécie de omertà, de lei do silêncio, que faz com que o agressor, aquele que perpetra esses abusos sexuais, seja protegido?

O mecanismo das vítimas é desde logo a questão da culpa. Curiosamente, uma coisa que nós percebemos é que a vitimização anda muitas vezes ligada a processos de culpabilização, ou melhor, de autoculpabilização. Se isto me acontece, qual será a minha culpa nesta situação? O que é que eu fiz para criar esta situação? Isto é típico. Depois o próprio agressor vai alimentando isso. Ao mesmo tempo, há um outro fator que eu acho que é extremamente importante, que é a questão do julgamento social. O medo do que os outros vão pensar. A vítima sabe que não está a viver uma situação padrão ou socialmente normativa, aceitável. Como é que os outros vão julgar isto, sobretudo quando há uma imagem que se deve preservar? Quer a imagem do próprio individuo, quer a imagem social da família como é o caso deste romance.

 

Maria José, uma das coisas que me deixou incomodado com a leitura deste seu romance, incomodado no bom sentido, no sentido em que o romance teve força suficiente para me incomodar, tem que ver com o apagamento da mãe. Ela sabia dos abusos, mas nada fez. Eu fiquei sem perceber se a mãe é também uma vítima ou se, pelo contrário, é agressora.

Eu não consigo efetivamente julgar esta mãe. Se eu fizer o julgamento imediato, certamente que esta mãe é ela própria uma agressora, pelo menos porque silencia algo que sabe que existe. Basta ver as notícias sobre a agressão sexual dentro da família para vermos que isto é relativamente comum. Mas, por outro lado, ela é também uma vítima. É uma mulher que vive muito para a questão do julgamento social, da imagem e do prestígio da família. Portanto, em última análise, aquilo que ela fez durante toda a vida foi pensar qual seria o mal menor. Claro que do ponto de vista do julgamento moral, mas eu não sei se nos cabe fazer esse tipo de julgamento, a sua escolha do mal menor foi uma escolha moralmente inaceitável.

 

Outro elemento interessantíssimo é o título do livro. Ao lê-lo espera-se algo completamente diferente, algo mais leve, mais inocente, e não aquela história dura, de violência, culpa e medo. Esta contradição entre o título e a essência algo sombria do romance foi intencional?

Sim, foi. Intencional no sentido de chamar à atenção para aquilo onde parece existir apenas inocência, afeto e amor, mas que afinal, tem lá por trás, uma realidade horrível, mascarada e totalmente escondida.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próxima convidada: Rita Baleiro, autora de “Literatura e turismo literário: Memórias e Diáspora”

Quarta-feira, 04 de dezembro, 9h30

Domingo, 08 de dezembro, 14h25

 

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