Nuno Gomes Garcia conversa com Nuno Amado: «A paixão à primeira vista existe!»

Nuno Amado, além de escritor, é psicólogo e professor universitário. Estreou-se na publicação em 2010, com o livro «Diz-me a Verdade Sobre o Amor». Seguiram-se os livros «Ups… Já fiz Asneira Outra Vez», em 2011, «À Espera de Moby Dick», em 2012, e «Manual de Felicidade para Neuróticos», em 2015.

No começo de 2018, a Oficina do Livro publicou o seu último romance, «Parem Todos os Relógios», que foi finalista do Prémio LeYa em 2017.

«Parem todos os relógios» é a história de um amor proibido entre Helena, uma professora de literatura de 36 anos, e um italiano de visita a Lisboa. Ora, essa tórrida relação é interrompida por um acidente e os dois amantes seguem caminhos diferentes. Porém, vinte anos mais tarde, Helena tem de agir para salvar o antigo amante, lançando-se numa arriscada aventura. Paralelamente, noutra linha narrativa mais avançada no tempo, Carlos – o sobrinho-neto preferido de Helena – conhece Francesca, uma rapariga italiana de pulsões suicidas que também precisa de ser salva.

 

Nuno, já te ouvi dizer sobre este novo livro que o teu objetivo ao escrevê-lo foi o de dar primazia à vida interior, tornando-a mais relevante do que a vida exterior. Tu dizes até que a maior parte da vida se vive por dentro. Explica-nos essa tua abordagem.

A ideia era pegar numa personagem que nós observamos muitas vezes na rua. Aquelas velhinhas que vemos numa mercearia e que aparentemente tiveram uma vida aborrecida, sem grande conteúdo. E depois fazer o exercício de imaginar como é que seria se essa pessoa tivesse tido uma vida cheia de aventuras. Imaginaríamos a intensidade daquilo que ela sente, a força das paixões que viveu, e que seria quase sempre superior àquela de quem a observa. Portanto, há esta ideia de que aquilo que se vive vive-se por dentro. E por dentro cada um é que sabe qual é a dimensão ou a profundidade daquilo que sente. Nós podemos observar por fora os comportamentos, podemos ouvir as histórias das pessoas, mas só elas verdadeiramente é que sabem a intensidade do que sentem. A ideia do livro, portanto, é tratar, contrapor as diferentes visões desta personagem, das diferentes pessoas que participam na sua vida, e como vão passando de uma ideia de uma pessoa se calhar frágil ou talvez desinteressante, uma pessoa de pequenos hábitos, para uma pessoa que viveu coisas muito mais épicas, muito mais românticas, muito mais apaixonadas do eles próprios viveram.

 

Um detalhe que me intrigou foi a existência de dois personagens italianos com peso no enredo. Porquê a Itália?

A Itália representa a boa vida, um povo apaixonado, de sangue quente. Há cerca de 100 anos, os romancistas ingleses utilizavam muitas vezes a Itália como referencial. Ou seja, contra a contenção inglesa, aquela maneira seca de ser, eles usavam…

 

A exuberância italiana…

Exatamente! Muitas vezes, as personagens inglesas apaixonavam-se por um italiano e aquilo desfazia a compostura inglesa.

 

A vida ganhava novas cores.

Sim, sim. E depois também era uma coisa de temperatura. De ser 10 graus acima.

 

Então, tu revisitaste os clássicos ingleses do século XIX e da passagem para o século XX?

Sim, sim, brinquei um bocado com algumas referências. Com os livros do Henry James. Existem pequenas alusões, por exemplo no apelido de um personagem. É essa literatura que eu gosto muito, porque também acho que é uma literatura que permite aos seus personagens, que eram personagens contidos, mas não limitados, a transformação. Uma pessoa sendo contida, por não fazer gestos muito exuberantes, não quer dizer que dentro delas não aconteçam coisas radicais e profundas.

 

Nuno, o Miguel Real, num excelente artigo que dedicou a este teu último livro no Jornal de Letras, faz uma analogia bíblica com as tuas personagens. Usando o estereótipo bíblico, ele compara a fogosa Helena a Maria Madalena e a virtuosa Lúcia, a sua irmã, a Maria de Nazaré. Concordas com esta leitura?

Sim. Isso foi feito de maneira propositada, embora depois sejam papeis invertidos, e ele também faz referência a isso. Explora-se a ideia da santa e da prostituta. Uma ideia antiga, com muitas manifestações. E a ideia seria que, no fundo, a mais virtuosa seria aquela com a vida mais dissoluta, a prostituta, e a menos virtuosa, a mais egoísta, com a vida mais seca, seria aquela que por fora aparenta ser moral, ética.

 

Nuno és psicólogo e, como escritor, abordas bastante a temática do amor. Faço-te uma pergunta sobre um assunto que muito boa gente considera quase místico: na tua opinião, existe amor à primeira vista?

Aí, entramos sempre na espiral da definição sobre o que é o amor.

 

E qual é a definição do amor?

Isso é uma coisa na qual eu se calhar não me metia (risos). Há diferentes versões do amor. Diferentes estádios. Podemos falar da paixão, do amor companheiro. A paixão à primeira vista, se não lhe chamarmos amor, existe. Ela não existe sempre, não quer dizer que seja a forma ideal, não quer dizer que um amor precise de ser à primeira vista para ser intenso, ou para ser transcendental ou sublime. Um amor pode crescer lentamente e tornar-se enorme, do tamanho do mundo. Mas a paixão à primeira vista existe. É um facto. Porque existem pessoas que se olham numa sala, numa rua, num baile e acontece qualquer coisa naquela troca de olhares. Há qualquer coisa que nos estremece a estrutura.

 

Mas como é que a ciência explica esse “estremecer”? É algo meramente químico, calculo.

Há sempre um componente químico em tudo o que pensamos e em todos os nossos atos de espírito. A ciência explica isto… bem, se quisermos ir para o campo da psicologia evolutiva, a vantagem do apaixonamento é a de dar energia suficiente para conseguir seduzir aquele que seria o parceiro ideal. Não o ideal, mas um parceiro muito desejável. Todo aquele estado típico do apaixonamento, o não dormir, o ter muita energia, é posto ao serviço da conquista daquela pessoa. E os contos de fada estão cheios disso. Os heróis veem a princesa, a Bela Adormecida, ou seja o que for, e têm de derrotar a bruxa, matar o dragão, experimentar o sapato no pé de todas as mulheres do reino. Têm de mostrar que aquela paixão não passa de um dia para o outro. Hoje em dia, se calhar não são precisos atos de grande heroísmo, mas é preciso seduzir, às vezes é importante manter alguma esperança perante todas as ambiguidades, o disse que sim, mas queria dizer que não. Demorou tempo a responder… Todas aquelas incertezas de um início de relação que podem ser muito cansativas.

 

Essa tua formação académica faz com que construas os teus romances de uma maneira particular?

Sim, mas não é planeado. Ou seja, não parto do princípio do «Ah, deixa-me cá arranjar uma personagem que seja psicótica ou obsessivo-compulsiva». Agora, sim, existe um certo conhecimento de como as pessoas são, como funcionam, como é que se relacionam, que implicitamente passa para o romance e vice-versa. Porque também aprendi com a literatura como é que as pessoas funcionam. Uma coisa alimenta a outra como uma espécie de pescada de rabo na boca em que é difícil dizer exatamente que parte é que está a ser escritor e que parte é que está a ser psicólogo. Até porque muitos dos meus escritores preferidos eram escritores de grande pendor psicológico. O Dostoievsky, por exemplo. Eram grandes escalpelizadores da mente humana. Porque é que as pessoas decidem isto e não decidem aquilo? Ou por que razão fizeram aquele gesto que até era contrário àquilo que queriam?

 

Nuno, para terminarmos, aconselha-nos um livro.

Sugiro-vos «Os Níveis da Vida» do Julian Barnes. Eu gosto muito do Julian Barnes e este livro tem diferentes partes, muito diferentes umas das outras. Ele mistura a ficção e a não-ficção de uma maneira que eu acho única e é um tipo que tem um olho incrível para pequenas histórias. Mesmo histórias reais, que aconteceram. Ou pequenos detalhes do mundo quotidiano que são extremamente poéticos.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Mathieu Dosse, tradutor do livro «Mon oncle le jaguar & autres histoires» de João Guimarães Rosa.

Quarta-feira, 9 de maio, 8h30

Domingo, 13 de maio, 14h25

 

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