Nuno Gomes Garcia conversa com… João Reis: “A noção de nação, ou de país enquanto entidade fechada, já não faz sentido”

A vida de João Reis daria, ela própria, um romance. Ele estudou filosofia; é tradutor de línguas escandinavas tão exóticas como o islandês; fundou uma editora, a Eucleia; trabalhou em locais tão díspares como cozinhas norueguesas e armazéns de vinho ingleses… e, no meio de tudo isto, e com apenas 32 anos, ainda teve tempo para escrever uma novela e um romance.

O romance – “A avó e a neve russa”, publicado pela Elsinore em 2017 – conta-nos a história de um rapaz de 10 anos, filho de pais russos, mas que vive no Canadá. Aliás, é ele que narra a sua história e a da sua família, principalmente a da muito doente avozinha, ou Babuska, em russo, nascida muitos anos antes na antiga União Soviética.

O rapazinho, possuído por uma imaginação transbordante, elabora um plano mirabolante para resgatar a avó das garras que lhe esmagam os pulmões destruídos por Chernobyl e a impedem de respirar. Nem que, para a salvar, ele tenha de ir ao México procurar uma planta mágica que lhe alivie a dor.

É nestas dicotomias, entre passado e presente, infância e velhice, capitalismo e socialismo ou oriente e ocidente, que a voz do narrador, ingénuo, mas inteligente, ganha força e se torna inesquecível.

 

João, de onde te vem essa apetência pelas línguas escandinavas? Eu ando há anos às voltas com o lituano e não há maneira de o aprender. Como é que consegues?

Há toda uma apetência, depende da pessoa, e depois é uma questão de aplicação. Há muito sacrifício por detrás da aprendizagem de línguas. Mas existe também uma grande proximidade entre as línguas escandinavas. Por exemplo, quem conhece o sueco tem facilidade em aprender norueguês, pois existe uma relação, um pouco como entre o português e o espanhol. Já o islandês, que é mais antiquado, mais próximo do nórdico antigo, é um caso um bocadinho mais complicado, tanto em termos gramaticais como a nível do léxico. Bem, eu comecei pelo sueco e, depois de me aplicar no estudo, de ler muito, lá consegui.

 

Tu começaste com um curso livre de uma Faculdade de Letras, não foi?

Exatamente. Vi aí que tinha algum jeito para aquilo. Também tenho boa memória, o que facilita a aprendizagem, mas obviamente que há um grande esforço fora do curso, visto que as aulas dos cursos livres não são suficientes.

 

Falemos um pouco do teu livro. Ele trata assuntos que nos tocam aqui, aos lusófonos de França, até por os vivermos diariamente: o multilinguismo, o multiculturalismo, a emigração… Como é que o teu personagem, sendo um rapazinho, lida com esta situação? E outra pergunta: o facto de teres escrito parte do livro em Montreal, no Québec, influenciou o rumo que deste à obra?

Começando pela tua última pergunta: sim, influenciou. No livro, refiro a enorme Comunidade portuguesa que vive em Montreal. Existe até um personagem português no livro. Influenciou na medida em que estive presente no local, absorvi aquela atmosfera muito característica de Montreal, que é uma atmosfera multicultural, vemos pessoas de todas as proveniências, ouvem-se várias línguas, embora o francês seja predominante. E, obviamente, a minha própria experiência influenciou o trabalho. Eu também já fui emigrante e estou por dentro das dificuldades ligadas à emigração.

 

A emigração que é um assunto cada vez mais premente nas sociedades modernas, não concordas?

Sem dúvida. No caso português, já temos diáspora há séculos. Até se diz que fomos nós, quer dizer, nós enquanto povo, que inventámos a globalização.

 

Dizem que foi o Vasco da Gama o grande responsável pelo começo da globalização.

Sim, e, nesse mundo globalizado, a noção de nação, ou de país enquanto entidade fechada, já não faz sentido. Por outro lado, o presente é talvez um pouco mais ingrato para quem emigra. Claro que há mais facilidade, até de deslocação. Eu tenho familiares que emigraram para França e, antigamente, até for força do regime que vigorava, era mais difícil viajar. Mas essa facilidade de deslocação não compensa todas as dificuldades que existem quando uma pessoa sai do seu país. E eu respeito muito os emigrantes porque é preciso coragem para sair e enfrentar uma nova realidade.

 

Este teu personagem é ele próprio uma nova realidade porque, tal qual os lusodescendentes de França, se tornou algo hibrido, até por ter os pés assentes em várias culturas. Mas este teu personagem é mais do que isso. Ele, que é órfão de mãe, que foi abandonado pelo pai, que vive com a avô doente, outra personagem importante, não é um rapaz normal. É isso que mais se nota no teu livro. De onde lhe vem aquela maturidade pouco comum? Tu conheces o personagem melhor do que qualquer um de nós.

Foi difícil criar o personagem. Foi em certa medida o livro mais difícil que escrevi.

 

Sim, até porque tens um novo livro prestes a sair.

Sai em abril, também pela Elsinore. Mas, sim, “A avó e a neve russa” foi um livro difícil. Quando o escrevi tinha 30 anos e pôr-me na pele de uma criança de 10 não é fácil. Eu tentei, o máximo possível, recorrer às recordações de como eu era quando tinha 10 anos. Essa criança, portanto, tem muito de mim. Muitos dos diálogos que encontras no livro, eu lembro-me de os ter tido. São quase uma colagem da realidade. Eu aproveitei muito das minhas vivências de criança solitária, que, apesar de ter amigos, vivia muito enfiada nos livros. A minha tentativa de equilibrar, na matriz do personagem, inocência com perspicácia, não foi fácil. Os adultos por vezes esquecem-se de como foi a sua infância e atribuem às crianças uma menor capacidade de compreensão do que aquela que de facto elas têm na realidade.

 

Bem, João, chegou a tua vez de nos sugerir um livro de que tenhas gostado.

Neste momento, estou a ler um livro de um autor belga: “Contes Carnivores” do Bernard Quiriny.

 

Entrevista realizada no quadro do programa “O livro da semana” na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Quarta-feira, 21 de fevereiro, 8h30

Domingo, 25 de fevereiro, 14h25