Opinião: Confinada

Há dias, e como de costume, atrasada no que diz respeito aos prazos de entrega dos meus textos prometidos, terminei mesmo assim a redação de ‘Contar os dias’ para o LusoJornal. Agora sem remorsos, pois não sendo mais a única zangada com os prazos a cumprir, tenho o Covid-19 por alibi geral comum…

Pensativa, aferi o grau de mansidão da palavra “confinada”. Esta palavra a convidar a imaginar que a situação até parece bonita, longe da realidade infetada à escala planetária… Como se tivéssemos, de repente, muita sorte em nos encontrarmos prisioneiros sob os nossos tetos (quando os temos), abrigados dos ‘perdigotos’ mortais, cujo único habitante microscópico, o Coronavírus, terá perfeitamente enganado a nossa vigilância.

Muita sorte? Talvez a sorte de ter tempo de pensar e de escolher outro caminho diferente de um que nos deixou no beco sem saída do liberalismo, mesmo do ultraliberalismo globalizado até agora, para inventar soluções democráticas, ecológicas e sociais inovadoras mais viáveis e respeitosas da VIDA.

Enésimo dia de confinamento. Acho que hoje é quarta-feira, mas não interessa… Uma imagem atormenta os meus dias. A imagem dos voluntários e funcionários da Câmara que presidiram as 71 mesas de voto no domingo, 15 de março. Aglutinados uns aos outros, em fila de espera, pelas 22h00, ao regressarem ao covil da Câmara municipal para devolver os devidos originais das minutas da contagem dos votos, mesa de voto após mesa de voto, os rostos cansados e inquietos mas cujos sorrisos muito generosos por terem cumprido a sua missão. Até à data, no meio destes Viriatos e Viriatas, desconheço quem ficou contaminado. No penúltimo dia antes do dia da eleição, tinha visitado o velhinho do Restelo, Presidente da Câmara de Metz, para lhe dar a minha opinião acerca da aberração da decisão tomada pelo Governo Macron em manter a primeira volta das eleições autárquicas. Confessou ter muito bem avaliado o perigo, como o número de desistências em presidir mesas de voto desde a proclamação de ‘lock down’ do país inteiro, apenas na véspera ainda (no 12 de março). Não obstante, estava fora de propósito ser o único caso em França a abdicar da eleição – a posteriori, a História teria honrado a nossa cidade, sem dúvida alguma.

Exceto casos de pneumonias ou de patologias respiratórias mais do que esquisitas, aparecidas com os enfeites de Natal em dezembro, de facto, em números razoáveis por ser curados, que nada podia indicar à França, à Europa e às Américas que íamos ficar muito doentes, como aconteceria na China, ou dito melhor, cair tragicamente como as moscas. Talvez para voltarmos à verdade esquecida da nossa condição humana e da sua tremenda fragilidade? Claro, as nossas convicções, tanto como os nossos anticorpos europeus são mais descarados do que os demais pelo mundo fora, disso tínhamos a certeza… Pois a China fica tão longe de nós… Além do mais, nós já sabemos comer “biológico”, nada de pangolins ou de morcegos mal fervidos, inacessíveis ao nosso bom gosto lendário como aos nossos bons costumes ancestrais…

Aqui, na velhinha Europa continental, em mal de fraternidade, dotados de uma visão cada vez mais acertada do que é uma “vida boa”, que sempre optámos pelas cortes errados. Assim, poupam-se em equipamentos vitais nos hospitais, na Saúde em geral, na Investigação Científica, na Educação, na Cultura, na proteção social, nos recursos humanos porque nada de melhor do que racionalizar e otimizar a despesa pública no máximo dos máximos. É vulgarmente aceite que só dividendos por biliões ditam a felicidade tangível no início deste século XXI a alguns afortunados, a percentagem do PIB a outros bem sortudos. Mas qual o horizonte para a maioria esmagadora dos restantes seres humanos?

Itália, com a qual temos uma fronteira terrestre, ainda assim já nos tinha avisado. O vírus é manhoso, ou seja, extremamente contagioso: “confinai-vos depressa, encerrai as vossas escolas, qualquer lugar que não seja essencial à sobrevivência também, e protegei-vos bem”. Na hora da festa de Nossa Senhora das Candeias, já tinha sentido a incongruência desta campanha eleitoral e da sua conclusão tristonha. Na verdade, nem as listas em dinâmica para a vitória, nem os derrotados anunciados em sondagem séria de vaidade lidavam a campanha com o espírito de combate habitual. O serão contagioso de 15 de março veio confirmar o pressentimento inédito de sem-sentido histórico, em nome de uma democracia a arrastar-se pelos 30% de taxa de participação. Para quê? Para separar uma primeira volta da segunda, uma metade do escrutínio da outra, para um tempo indeterminado mas longo demais, para enfrentar uma situação desconhecida do código eleitoral como inadmissível à sabedoria constitucional. Portanto, uma primeira volta confiscada até ao cancelamento da segunda, adiada para o outono de 2020 ou, ainda, para a primavera de 2021, para os mais de cinco mil municípios não eleitos. Vitoriosos e derrotados, em suspenso, como as nossas vidas.

Permanecemos eleitos, permaneço eleita, ainda tempo suficiente, nos próximos meses para festejar os 800 anos da Catedral Saint Étienne de Metz aqui. A mulher é resiliente, não vacilou nem um segundo – nem os nazis ousaram desafiá-la! – nem as pedras de Jaumont (1), nem as cores eternas dos vitrais trabalhados por Jacques Villon e Marc Chagall, mancharam, um só instante, com receio do SRARS-Cov2, segundo na ordem de filiação. Quando penso em todas as pessoas, sempre fiéis, em primeira linha da frente como a minha irmã, enfermeira, tantas horas seguidas para salvar a vida dos outros, sem a certeza se a própria vida dela será poupada, tão pouco sem afetos particulares ou gosto cínico para fartura de prémios porvir. Também quando penso no meu irmão, pés nas fundações das obras, que deve imprescindivelmente terminar ou outras para iniciar o mais cedo possível, caso os materiais sejam entregues, porque não tem estatuto elegível ao fundo de desemprego de urgência. Por fim, quando penso em todas as pessoas que vivem em países onde não existe nenhuma rede de vida, salvo os rendimentos oriundos da força do trabalho ou de poupanças, meço, quanto e tanto, a mansidão da palavra “confinada” que conta os meus dias pandémicos mas privilegiados.

Um tempo de pós-Coronavírus acontecerá. Um dia alguém me disse “não há outro caminho a seguir que prosseguir sonhos tão altos como uma Catedral”. A Sé de Metz, cujo arquear é o terceiro de França, após as cidades de Beauvais e de Amiens, é um marco de referência perfeito a fim de deixar de procrastinar preguiçosamente o fim do mundo, mais precoce do que agendado, atos políticos fortes respeitando, até que enfim, a TERRA e a VIDA.

Porém, neste tempo do pós-Coronavírus, está fora de questão esquecer as injustiças sofridas anos a fio, derivadas de atitudes e práticas com consequências semelhantes às do Covid 19, coletivamente fatais, que decidimos, porém, unânimes, combater doravante. Por conseguinte, o combate será sem tréguas contra as misoginias patriarcais de todas as espécies, contras as xenofobias e os racismos tramados, contra antessimetismos nojentos, contra os podres crónicos do socialismo democrático, dado como morto aqui por tão fracos defensores deles próprios, ignorantes sequer da essência, da verdade, da força e do futuro brilhante desta tão bela ideia, ainda nova, que é a Ideia Socialista, a ideia da igualdade real.

Como nem todos têm por vizinha uma Sé amável e com várias centenas de anos, fiel a todas as manhãs de Metz, partilho convosco umas palavras do resistente político e poeta francês René Char, dirigidas ao amigo Francis Curel (2), em 1955:

“Será esta a porta do nosso fim escuro, perguntavas tu?

Não. Encontrámo-nos no inconcebível, mas com marcos deslumbrantes”.

Amiga de anticorpos deslumbrantes, imunizada, beijos e abraços.

 

Notas:

(1) Pedra de Jaumont, dita Pedra do sol, extraída desde a Idade Média, no distrito de Moselle, onde muitos imigrantes portugueses trabalharam e que serviu para a edificação da Catedral de Metz.

(2) in Recherche de la Base et du Sommet, Gallimard.

 

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LusoJornal