Lusa | António Pedro Santos

Opinião: O que ia acontecer nunca aconteceu

Nós, os que não estamos na linha da frente, combatendo ou feridos em combate, não temos o direito de gritar as nossas queixas. Muito menos temos direito de queixa, os que, em teletrabalho, mantemos todas as regalias sociais e salariais e somos ainda mimados com uma inimaginável quantidade e variedade de ofertas culturais e de entretenimento por todos os agentes da cultura erudita e popular que não querem nem podem ser esquecidos.

Cada vez que cairmos nessa tentação, pensemos nos verdadeiros prisioneiros – uns, heróis de várias resistências políticas e sociais, outros, simples criminosos. Mas todos passaram meses e anos encarcerados em celas minúsculas, umas sobrelotadas, outras, de propositado isolamento.

Mas seja-nos, ao menos, dado o direito de nos lamentarmos baixinho, de exibirmos a nostalgia do nosso passado recente ou de um futuro próximo que nunca aconteceu.

Hoje, acaba um mês que, de facto, só teve duas semanas ativas. No calendário, os eventos foram riscados ou nem sequer chegaram a ser inscritos. Seja-me hoje dado o direito de fazer convosco o exercício perverso de fingir que esses dias foram preenchidos. Vou falar-vos do que ia acontecer e nunca aconteceu. Fazer o balanço de atividades que não houve: cinema, música, literatura… A verdade é que, em cada caso podemos pegar nos autores e nas obras citadas e procurar vê-las, ouvidas, lê-las. E com isso podemos consolar-nos numa doce ilusão de realidade.

O festival Cinema du Réel e o Museu du Jeu de Paume tinham programado, entre 13 e 31 de março (hoje!) a presença do cineasta Pedro Costa, para apresentação de sete dos seus filmes, uma Carte Blanche e ainda uma masterclass. Negando-se a toda a facilidade na comunicação da sua obra, Pedro Costa é um verdadeiro mito da cinefilia francesa. Ainda não foi desta vez que Cavalo Dinheiro (2014) e Vitalina Varela (2019), as suas últimas obras, foram mostradas em França. Nelas nos mostra, entre a dura realidade e as não menos duras exigências da ficção, a vida de Varela e da sua viúva Vitalina.

Noutro festival, o L’Europe autour de l’Europe, que também dá atenção regular à produção portuguesa, a jovem e já muito premiada Salomé Lamas, apresentaria Extinção/Extinction, um documentário também nas fronteiras da ficção que, mergulhando na realidade fantomática da República nunca reconhecida da Transnísia (separada da Moldávia desde 1990) desenvolve como tema, precisamente, o do absurdo das fronteiras políticas.

No domingo, no ano do 30º aniversário a morte de Alain Oulman e no centenário de nascimento de Amália, um espetáculo musical-teatral, deveria ter acontecido na Casa de Portugal para celebrar a relação profissional de Amália com este compositor francês que lhe permitiu abraçar a poesia contemporânea e histórica portuguesa e tornar-se também um ícone, em França. O projeto é uma criação de Pierre Lèglise-Costa e do grupo Jardim Jazz, o texto é de Lídia Jorge e a voz de Mariana Fabião. Teremos certamente a oportunidade de o ver reprogramado nos próximos meses.

Certamente, também a cerimónia de entrega, a Valério Romão, do Prix Littéraire Régional de la Francophonie de la Région Auvergne-Rhône-Alpes, será remarcada. Instituído recentemente, o galardão celebra uma obra recém-traduzida de um autor com laços evidentes com a região. O autor, editado pela Chandeigne, tem traduzidos Autisme, De la famille e Les eaux de Joana e nasceu, exatamente, na cidade de Clermont-Ferrand.

Os seus livros falam intensamente da família ou de relações familiares intensas – tudo o que nos é dado viver nestes dias de confinamento!

Boas escolhas culturais e até para a semana.

 

Esta crónica é difundida todas as semanas, à segunda-feira, na rádio Alfa, com difusão antes das 7h00, 9h00, 11h00, 15h00, 17h00 e 19h00.

 

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