Paris: Pânico de novo atentado afasta lusodescendente do processo do Charlie Hebdo

Ivo Magalhães trabalhava na bomba de gasolina onde os irmãos Kouachi se abasteceram de comida após o atentado ao Charlie Hebdo e, cinco anos depois, não conseguiu ir testemunhar no processo devido ao “pânico de um novo ataque”.

O advogado de Ivo Magalhães, Emmanuel Ludot, falava ontem de manhã à Lusa, à margem de mais uma sessão do julgamento dos atentados ao Charlie Hebdo e ao Hyper Cacher, que vitimaram mortalmente 17 pessoas.

Na ausência de Ivo Magalhães, coube a um dos magistrados que estão a julgar o processo ler o testemunho do lusodescendente e um resumo dos factos apurados na manhã de 8 de janeiro de 2015, numa estação de serviço a uma hora de Paris.

Ivo Magalhães entrou para mais um dia de trabalho na estação às cinco da manhã e, por volta das 9h30, viu dois homens a entrarem na loja enquanto acabava de atender outro cliente. O encontro com os irmãos Kouachi, que na véspera tinham assassinado 12 pessoas na redação do Charlie Hebdo, não durou mais de quatro minutos, mas deixou marcas profundas no lusodescendente.

“A republicação das caricaturas no ‘Charlie Hebdo’ criou um efeito de pânico nele. Ele pensou que isso podia ser um pretexto para um novo atentado e a perspetiva de entrar no Palácio de Justiça dava-lhe a impressão de que a sua vida estava de novo em perigo”, indicou Emmanuel Ludot à Lusa.

Cinco anos após este encontro, o lusodescendente não refez a sua vida, não conseguindo, por exemplo, entrar em lojas sozinho ou andar de elevador, segundo o seu advogado. Emmanuel Ludot explicou perante o tribunal especial que está a julgar o processo as razões do seu cliente para não falar e mencionou ainda que nunca foi feita uma perícia psicológica ao seu cliente.

“Quando me tornei advogado do Ivo, pedi uma perícia, mas disseram-me que era demasiado tarde e que ia atrasar o processo. Disseram-me para pedir aqui, perante os magistrados que estão a julgar os factos, mas os únicos peritos que vão falar são as pessoas que examinaram os acusados e ninguém vai explicar o traumatismo das vítimas de terrorismo”, indicou Emmanuel Ludot, que é o segundo advogado do lusodescendente neste processo.

Atualmente na terceira semana do processo, o julgamento tem primado até agora pelos testemunhos em primeira mão das vítimas e das famílias das vítimas que morreram nos atentados. Alguns dos testemunhos mais emocionados foram das famílias dos jornalistas do Charlie Hebdo, assim como dos sobreviventes da redação.

Estes testemunhos permitem reconstruir a maneira como os ataques foram levados a cabo, mas também a maneira como os irmãos Kouachi procederam nos dois dias entre o ataque à redação do Charlie Hebdo e a sua morte, abatidos a tiro pela polícia, numa gráfica nos arredores de Paris.

A Ivo Magalhães os terroristas asseguraram que não o matariam, que estavam “apenas com fome” e nem aceitaram o dinheiro da caixa da estação de serviço, levando apenas sacos com comida e bebida. Talvez à procura de fama ou do estatuto de mártir, perguntaram ao lusodescendente se os tinha reconhecido da televisão e disseram para ele esperar cinco minutos antes de chamar a polícia.

Na sessão de terça-feira, o Comissário da polícia que investigou o caso para a sub-Direção da antiterrorismo da polícia judiciária, explicou que os terroristas teriam “uma necessidade de reconhecimento”.

Após o curto encontro com os irmãos Kouachi, Ivo Magalhães chegou mesmo a ser suspeito de ser cúmplice dos terroristas. “A polícia duvidou dele e achou que ele poderia ser cúmplice. O que foi um erro. Eles pensaram que quando ele contactou a polícia e lhes disse que eles tinham ido por um lado, era para os despistar. O que não era verdade”, contou Emmanuel Ludot.

O lusodescendente conseguiu voltar ao trabalho após o incidente, tendo recebido uma “pequena indemnização”, mas segundo o seu advogado não foi reconhecido como vítima de terrorismo, cobrindo ele próprio os custos do seu acompanhamento psicológico. De forma a acelerar a sua recuperação, Ivo Magalhães escreveu mesmo um livro “Eu, Ivo, vítima de guerra”, que saiu no início de 2019.

Sem os atacantes no banco dos réus, já que todos foram abatidos mortalmente após os ataques, os réus são 14 suspeitos de terem facilitado a concretização destes atentados. As audições dos suspeitos vão começar no início de outubro, mas as expectativas em relação a um esclarecimento total sobre o que aconteceu não são otimistas.

“A finalidade deste processo é demonstrar que somos uma democracia exemplar e que temos uma resposta jurídica para todos os atos de terrorismo que acontecem no nosso território e que temos o assunto controlado. É uma demonstração de força, mas dissimulamos as verdadeiras razões. Aqui nem se trata de uma guerra contra o Ocidente, é uma guerra para instaurar um califado islamita que dura há mil anos”, concluiu Ludot, que reivindica um estatuto de vítima de guerra com uma pensão para todas as vítimas de terrorismo.

O processo do Charlie Hebdo e do Hyper Cacher começou no início de setembro e vai desenrolar-se até novembro. Ao contrário de um julgamento com júri normal, por ser um processo ligado ao terrorismo e devido a possíveis ameaças feitas aos jurados, o júri é constituído por magistrados, cinco em primeira instância e sete em caso de recurso.

Caso sejam condenados, as penas dos 14 réus podem ir de 10 anos de cadeia até prisão perpétua. A pedido do Ministério Público Nacional Antiterrorismo, este julgamento será filmado. A captura de imagens e gravações durante os julgamentos é, em princípio, proibida na França, mas desde a lei de Badinter de 1985, pode ser autorizada se “for de interesse para a constituição de arquivos históricos da justiça”.

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LusoJornal