Opinião: Herdeiros da história

Em março de 1916, a Alemanha declarava a guerra a Portugal, na sequência do apresamento dos navios germânicos refugiados nos portos portugueses. Entrar no conflito significava para a nossa jovem República o reconhecimento internacional e, quiçá, a salvaguarda das colónias ameaçadas pela cobiça de Londres e de Berlim, no quadro dos acordos anglo-germânicos de 1898 e de 1912. Estes comportavam uma cláusula secreta sobre uma possível divisão de Angola e de Moçambique entre aquelas potências. Há que recordá-lo: a posse de colónias era para os países europeus de então um símbolo de grandeza.

O sentimento dominante na Lisboa de 1916 não era novo. Desde o III° Centenário da morte de Camões (1880) que os Republicanos insistiam na restauração da grandeza nacional. Muito antes do 5 de outubro de 1910, já os acordes de «A Portuguesa» convidavam: «Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal».

Popularizada pelo clima emocional subsequente ao Ultimatum britânico (1890), entoada pelos revoltosos de 31 de janeiro de 1891, no Porto, esta canção fora adotada pela República como Hino Nacional.

Os interesses, nacional, colonial e republicano determinavam a entrada de Portugal na grande conflagração de 1914-1918.

Em janeiro de 1917, partiu para a França o primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português [CEP], vindo reforçar a frente anglo-francesa na Flandres.

Durante os meses que se seguiram, os nossos militares suportaram as péssimas condições de vida nas trincheiras. «No verão, o calor era asfixiante […], escreve o general Gomes da Costa, no inverno, os soldados atascavam-se na lama até aos joelhos, .[…] o calçado escorregava na geada ou no gelo e os militares caíam entorpecidos […] depauperando-se dia a dia, ainda antes de lhes ser exigido um maior esforço de combate».

Na primavera de 1918 o comando alemão lançou uma ofensiva sobre o setor luso-inglês. Objetivo: forçar a vitória antes da chegada em força das tropas americanas. A Alemanha dispunha, nesta altura, de superioridade numérica, na sequência da paz de Brest-Litovsk, com os bolcheviques. Sete divisões germânicas foram lançadas sobre três divisões anglo-lusas. O bombardeamento começou na madrugada de 9 de abril. A rendição dos combatentes do CEP por tropas frescas estava prevista precisamente para esse dia. Os Portugueses foram apanhados numa situação completamente desfavorável, fisicamente exaustos, desmoralizados, com graves falhas de efetivos, depois de um ano consecutivo de vida nas trincheiras. A batalha de La Lys saldou-se por um desastre. De realçar, todavia, que «o esforço português contribuiu para impedir o exército alemão de alcançar o seu último objetivo: empurrar os ingleses para o mar. Se a 12 de abril de 1918 o CEP estava desfeito, a ‘Operação Georgette’ – nome código da ofensiva alemã – estava praticamente acabada e derrotada».

Não obstante o triunfo alemão em La Lys, a vitória final pertenceu aos Aliados. Ao tomar parte na Conferência de Paz, Portugal conseguiu salvaguardar os objetivos que tinham determinado a sua entrada no conflito.

São aspetos da nossa História que não podem cair no esquecimento. Para passar testemunho às jovens gerações, a Secção Portuguesa do Liceu Internacional de Saint Germain-en-Laye convidou Carlos Pereira, Diretor do LusoJornal para apresentar aos alunos o documentário da sua autoria «Os Herdeiros da Batalha de La Lys / Les Héritiers de la Bataille de La Lys». Falado em português e em francês, este trabalho audiovisual aborda o combate de 9 de abril de 1918 com grande originalidade.

Primeiro motivo de interesse é a recolha de testemunhos dos descendentes de combatentes portugueses que se fixaram em França no pós-guerra e ainda de outros entre os quais se destacam os da filha e da neta do célebre Aníbal Milhais, o «Soldado Milhões». O autor dá ainda a palavra a cidadãos de vários quadrantes, alguns dos quais exercendo importantes responsabilidades.

O documentário regista também os lugares relacionados com a batalha de La Lys. Lembramos três. Primeiro, a aldeia de La Couture que os homens do CEP defenderam com galhardia e onde foi erguido o monumento de homenagem ao soldado português. Vem a seguir, em Saint Venant, a casa onde esteve sediado o Quartel-General do CEP e, finalmente, o cemitério militar português de Richebourg onde mais de dois mil combatentes (alguns deles desconhecidos) repousam para sempre.

Se todo o Portugal é herdeiro da sua própria História, os filhos e netos dos antigos combatentes de La Lys estão na primeira linha e são testemunhos vivos.

A sessão resultou plenamente. Os estudantes intervieram com perguntas pertinentes, incluindo aspetos menos conhecidos como, por exemplo a participação de Portugal nos tratados de paz. Para todos Carlos Pereira teve uma resposta, convidando os jovens a conhecer melhor esta página das relações luso-francesas, seja pelo estudo ou por pesquisas, no futuro.

«Os Herdeiros da Batalha de La Lys / Les Héritiers de la Bataille de la Lys» revela-se uma transmissão de testemunho às jovens gerações e muito útil à tomada de consciência do valor da História. É ainda um excelente veículo de difusão da História de Portugal, tão pouco conhecida em França. Vê-lo é ficarmos mais enriquecidos.

José Carlos Janela

Diretor da Secção portuguesa do Liceu internacional de Saint Germain-en-Laye

LusoJornal