«Cantarei até que a voz me doa», uma das frases míticas da mítica Amália Rodrigues

Um país tem necessidade de vedetas, vedetas que representem um país ao mais alto nível internacional.

Amália Rodrigues era a maior na sua arte: o fado.

Talvez a mais conhecida das Portuguesas além-fronteiras. Grande, como grande é nos nossos dias Cristiano Ronaldo, como grandes foram Eusébio, Joaquim Agostinho, os emblemas de um país, os emblemas de Portugal.

Falar destes mitos, é falar de Portugal, o melhor de Portugal.

Hoje vamos dar-vos uma prenda, como prenda foi a entrevista que nos foi permitido fazer à grande Amália Rodrigues.

Comemora-se em 2019 o vigésimo aniversário do desaparecimento da Amália Rodrigues. Altura para se lhe fazem homenagem, retrospetivas, exposições… e até um concerto em Paris, com fadistas de Portugal e de França.

Amália, que segundo certas enciclopédias dizem ser originária do Fundão (será?) viveu efetivamente os primeiros anos da sua vida na região do Fundão, contudo Amália Rodrigues, de seu nome completo Amália da Piedade Rebordão Rodrigues, nasceu a 23 de julho de 1920, na freguesia da Pena, em Lisboa. Os pais tendo-se mudado para o Fundão, Amália foi batizada a 6 de janeiro de 1921, na igreja Paroquial do Fundão.

Os contactos que fizemos não nos permitiram encontrar o ato de nascimento de Amália Rodrigues, foi-nos facultado, contudo, o ato de Batismo.

Amália ainda hoje detém um recorde em Portugal: editou durante a sua vida 170 discos em 35 países diferentes.

O dia 3 de junho de 1983 ficará na nossa memória.

Organizado pelo Centro de Ação Cultural de Tourcoing (L’Espierre) decorreu entre os dias 24 de maio e 4 de junho, um ciclo de manifestações dedicadas a Portugal. O ponto mais alto foi, sem dúvida, o espetáculo que Amália Rodrigues deu no dia 3 de junho no Teatro Municipal daquela cidade. A sala encheu por completo, com cerca de 700 pessoas. Foram duas horas de grande felicidade: Amália imitando Amália…

Poucas horas antes do início do espetáculo e já na sala, Amália Rodrigues teve a gentileza de nos conceder, a mim e ao amigo que já nos deixou, Manuel Fonseca, uma entrevista para a Rádio Boomerang da qual irei destacar no presente artigo os pontos principais focados.

Anedota: como amadores que eramos, levamos dois gravadores, um mais sofisticado e um menos que o outro. Ainda bem porque só o menos sofisticado gravou! É desta gravação que extraímos a entrevista que publicamos aqui, volvidos que são 35 anos… o tempo não volta para trás, não…

Amália Rodrigues não estando ainda maquilhada, não nos autorizou a tirar fotografias.

Como poderão constatar, muitos dos temas abordados continuam de atualidade, contudo Amália que hoje está sepultada no Panteão em Lisboa, minimizava a sua pessoa, dizendo que, as pessoas a esqueceriam.

Amália teve algo de comum com o entrevistador: viveu alguns anos na sua infância, numa casa que mais tarde se chamaria o Café da Beiroa. Uma coisa podemos dizer, a fadista não tinha «papas na língua».

Amália, um mito, Amália, uma pessoa rica, mas ao mesmo tempo cheia de contradições, com certezas, mas também com dúvidas. Tudo isto o leitor se aperceberá ao ler a entrevista.

 

Amália, o que representa para si o verão de 1940 e o retiro da Severa?

O verão de 1940 representa artisticamente o meu início. Foi lá que tudo começou, a razão de vocês estarem aqui a fazer-me perguntas, a razão de eu estar aqui sentada neste camarim.

 

Quais foram os artistas que a inspiraram nos primeiros tempos?

Eu comecei a cantar o fado porque o fado era a única forma de expressão que me estava ao pé da porta. O fado em Lisboa era sempre cantado pelas sardinheiras, a lavar a roupa, a lavar a loiça… Nenhum artista me inspirou e inspiram-me todos. Nenhum me inspirou profundamente porque vim cantar o fado de uma maneira completamente diferente.

 

Ao fazermos a pergunta de quais foram os artistas que a influenciaram, estávamos a pensar em Carlos Gardel, por exemplo…

Sim, quando era jovem cantava os tangos de Carlos Gardel. Eu ia ao cinema quando tinha 11, 12 anos e saia de lá não sabia o que dizia, mas cantava. Vinha para casa e o meu avô abrigava-me a cantar aquilo na rua. Há uma artista de fado que sempre admirei: foi a Hermínia Silva, mas nunca a segui, nem a mim consigo imitar, quanto mais imitar os outros.

 

Há quem diga que o fado remonta longinquamente, não se sabendo bem a sua verdadeira origem…

Sim, como sabe houve várias formas de fado. Há muito quem o cante, há muito quem o toque, e depende muito de quem faz as melodias. O que é um facto, é que há uma raiz, você quando planta uma planta, esta pode nascer com folhas mais curtas, mais compridas, pode ser mais alta, mais baixa, nada é completo, nada é definitivo. O início da minha carreira foi completamente diverso, de tal maneira que me disseram que eu cantava o fado à espanhola. Ora eu nunca tinha conhecido espanhol, tanto mais que o fado não é cantado em Espanha. Suponho que a minha maneira de cantar é uma coisa que me sai da marca do sangue por ter família da Beira Baixa. O folclore da Beira Baixa tem muito daquelas formas mouriscas que o mestre Frederico de Freitas disse que eu trouxe para o fado. Ouvi cantar daquela maneira as minhas tias, a minha mãe, a minha avó. Há, portanto, no meu sangue um tipo de influência da Beira Baixa. Mas o fado nasceu em Lisboa, eu sou de Lisboa, o fado é uma canção urbana, mas eu trouxe para o fado esta maneira de ligar as frases com as outras.

 

Uma pergunta mais pessoal. Sou da Beira Baixa, mais precisamente de Alcaria. Ouvi dizer na minha terra que a Amália passou por lá. É verdade?

Na minha família até há uma lenda. A minha avó, mãe da minha mãe, que hoje tem 91 anos, é de Alcaria. A minha bisavó queria deixar-nos propriedades e, para nós que não tínhamos nada, era uma grande herança. A minha avó tinha-se casado contra a vontade da minha bisavó, o meu avó zangou-se com a sogra e nunca mais quis aparecer. Entretanto vieram para Lisboa. Cada vez que a minha família vai ao Fundão, a minha mãe diz-lhes: mas porque é que vocês são parvos, ides lá agora mas já não temos direito a nada. Já passou tanto tempo, contudo ainda hoje a minha mãe sonha com a herança, e diz-nos porque é que vocês não vão lá, porque é que não tratam daquilo.

 

Os seus familiares são todos da região do Fundão?

A minha mãe e tios nasceram todos no Fundão, meu pai nasceu em Castelo Branco, meu avô é do Souto da Casa e minha avó de Alcaria.

 

Amália, se lhe pedirmos para definir o fado, qual será a sua resposta?

O fado é Portugal. O fado é como o caldo verde, as ervilhas, a salsa… tudo aquilo que representa Portugal.

 

E como define a artista Amália?

Você não encontra definição para Amália. Amália foi um milagre, é o destino, é o fado.

 

Para além de grande artista de fado e da grande expansão que lhe soube dar, a Amália participou num certo número de filmes. A experiência foi boa? Deixaram-lhe boas recordações?

A vida de artista, é como a vida de toda a gente. Toda a gente na sua vida teve momentos bons e momentos maus. Em nunca tive, graças a Deus, momentos maus no palco, mas tive momentos maus de ter que passar por exemplo três horas a assinar autógrafos, o que já não é lá muito mau.

 

Amália, você já percorreu dezenas de palcos e dezenas de países. Visto estar atualmente em França, quantas vezes já passou em vedeta no Olímpia de Paris?

A partida para a minha carreira internacional devo-a à França. Fiz aqui um filme «Les amours du Taje» e duas cantigas tiveram muito sucesso, que foi o «Barco negro» e «Solidão». Nas máquinas de Jukebox por todos os cafés de Paris só se ouviam aquelas cantigas. Ouviam-se de tal maneira que fui convidada para ir ao Olímpia numa altura em que cá não havia Portugueses em França. Enchi o Olímpia unicamente com Franceses. Quando eu vim cá pela primeira vez, há já 29 anos, a emigração portuguesa ainda não tinha começado.

 

Por falar de Olímpia, o seu fado em França é praticamente mais escutado pelos Franceses do que propriamente pelos emigrantes portugueses, por que será?

Para as pessoas que estão fora de Portugal e originárias de várias regiões de Portugal, há uma coisa que lhes interessa muito que são as letras. E as letras quando falam dos problemas das pessoas – o meu filhinho, o xaile da minha mãe – têm tendência a entrar nas pessoas. Eu sinto as coisas de uma outra maneira, sou mais levada para a poesia lírica, para o romantismo, para a angústia, para a solidão, para a morte. Tenho uma certa profundidade, sou pessimista. Também canto coisas alegres, são alegres, mas não têm a ver com a vida das pessoas. Ora o que as pessoas gostam é de ouvir falar da terra deles, gostam dessas coisas e vão atrás delas. Ora o Francês, não. O Francês aprecia a voz e a maneira de cantar. A primeira vez que fui ao Olímpia, estive lá seis semanas. Tive épocas de estar três meses em Paris. Os Franceses queriam que eu ficasse aqui. O Coquatrix disse-me que se eu quisesse ficar cá, seria a primeira vedeta francesa, mas eu o que queria era ir pra Portugal. Portugal é o meu país.

 

Amália, fazer fado será contribuir para o desenvolvimento da cultura portuguesa?

Desculpe, eu não falo de cultura, porque a cultura não tem nada a ver com o fado. Antigamente era tão ridículo cantar fado, tão mal visto, não me diga que Portugal era tão atrasado que não gostava de ser culto? Quando eu comecei a cantar fado, a minha família, que foi pelintra toda a vida, deixou de falar para mim e para a minha mãe. O fado não faz parte da cultura portuguesa.

 

Artista com envergadura internacional, como é que sente o público, como é que nota que qualquer coisa está a passar do palco para a plateia?

No palco sinto-me bem. A única e verdadeira compensação que um artista tem, é o público, são as palmas. Há uma segunda compensação que é a parte material. Não nego que enverguei a carreira profissional por causa do dinheiro. Contudo, penso ter qualidades como artista, já canto há 42 anos. Ora não há nenhum artista que dure 42 anos artisticamente se o público não gosta dele.

 

Amália, mesmo quando deixar de cantar, continuará a ser Amália, haverá sempre o mito de Amália que vai ficar…

Não, quando acabar a Amália, as pessoas começarão a dizer mal dela. Ainda agora quando estive doente, as pessoas começaram a dizer que eu estava drogada, que cantava pior, que já não cantava nada. As pessoas no fundo são más. No outro dia fiz um espetáculo na Aula Magna com o António Variações, um rapaz da música nova, a miudagem de 16, 17 anos vieram todos atrás de mim. Eu sou uma cantora portuguesa e de uma raiz portuguesa, bem agarrada à terra portuguesa, com capacidade de sentir. Não canto por cantar.

 

Como artista, qual foi o momento mais alto da sua carreira?

Tive vários momentos altos, um deles foi o Olímpia, o festival de Edimbourg na Escócia. Este festival era todo clássico, fizeram uma exceção para mim. Outros momentos altos foram os concertos em Nova York, acompanhada pela Orquestra Sinfónica no Lincoln Center que é a casa mais importante de música a nível mundial. Os pontos altos, graças a Deus, foram tantos que seria longo enumerá-los. Tenho cantado dos piores aos melhores palcos do mundo e com as melhores orquestras.

 

Qual a sua canção que terá feito até hoje mais sucesso?

Os fados são como paixões, alguns deixam na memória uma cinsazinha e outros são sempre paixão violenta que continua sempre. Tenho uma enorme paixão por «Ai Mouraria», «Povo que lavas no rio»… O «Barco negro» foi a canção que me lançou a nível internacional e foi mesmo cantada por artistas franceses. Há algumas melodias às quais dei vida e que já estavam a ser enterradas: é o caso do «Tiro-liro» e do «Malhão». Comecei a cantá-las novamente e toda a gente voltou a cantá-las.

 

Como analisa o momento atual da canção portuguesa e quais os seus artistas preferidos?

Eu não posso falar dos artistas portugueses, vou ofender um… vou ofender outro. Eu tenho uma predileção pelas pessoas que são simples, naturais e autênticas.

 

A Amália conhece a Linda de Suza? Será que tem qualidade para vingar na via artística? Que pensa das canções que ela interpreta, algumas das quais você já cantou?

Sim ela segue-me e tem uma maneira de cantar à minha maneira. Linda de Suza tem para mim uma maneira de cantar que é agradável.

 

Como explica que a nível internacional, das artistas da canção portuguesa, apenas Amália seja conhecida?

Sim, eu tenho corrido toda a parte do mundo, da África ao Japão, da Rússia a Israel, do Médio Oriente à América Latina. Não sei explicar o facto. O que sei é que uma pessoa quando tem qualidade, mais tarde ou mais cedo é reconhecida. A minha, graças a Deus, foi logo reconhecida quando comecei a cantar. Meses depois era já atração no teatro. Não andei a marcar passo e não conhecia ninguém a não ser o sapateiro que tinha à minha porta.

 

Quer deixar, no fim desta entrevista, uma mensagem para todos os compatriotas residentes aqui em França?

Sou muito verdadeira, muito sincera. Sou incapaz de lhes dizer: «Ai meus queridinhos, etc.» como muitos. Se vieram à procura de uma vida melhor, espero que a tenham conseguido e da melhor maneira possível, mas também gostava que tivessem saudades de Portugal e que lhes apetecessem de vez em quando uma sardinhada à nossa moda. Assim que encontrarem aquilo que desejam, regressem ao país.

 

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LusoJornal