Home Cultura Encontro virtual com o escritor Nuno Gomes Garcia no Liceu Internacional de Saint Germain-en-LayeLusojornal·7 Janeiro, 2021Cultura [pro_ad_display_adzone id=”46664″] Na terça-feira, dia 10 de novembro, no Liceu Internacional de Saint Germain-en-Laye, na sala da Secção Portuguesa, houve um encontro virtual do 10º ano com o autor e arqueólogo Nuno Gomes Garcia. O autor português trabalhou na área da Arqueologia e da História durante alguns anos. Após um certo tempo trabalhando nessa área, iniciou-se na literatura e escreveu alguns romances como “O Homem domesticado”, “O Dia em que o Sol se Apagou”, “O soldado Sabino” ou o conto “O Sobrinho”, sendo este último o ponto de partida para a conversa com o escritor. O conto que serviu de base ao encontro à distância levou à abordagem de várias questões. O autor é muito engajado na luta pela igualdade de género (considera-se feminista pois deveria existir igualdade total entre homens e mulheres) e na luta contra o racismo e a xenofobia. O conto “O Sobrinho” levou, por exemplo, a que o escritor relembrasse aos alunos, durante a conversa, que falar de “raças” não faz sentido do ponto de vista biológico, que o termo “racismo”, num mundo ideal, não deveria sequer existir, pois as “raças” são uma “criação artificial de origem sociocultural”. O objetivo do autor, quando escreveu “O Sobrinho”, foi, mais do que sensibilizar, conscientizar o leitor sobre a sociedade em que vivemos, para que o leitor não viva numa “bolha” e tome consciência dos problemas gerados pela xenofobia e pelo racismo. Temos todos que ter uma intervenção na sociedade, o que Nuno Gomes Garcia também chamou “política cidadã”, porque vivemos em Democracia. Quando algo sucede nas nossas vidas, nós, dentro das nossas “bolhas”, não nos damos sempre conta da realidade. É nesse momento que o livro e o papel do escritor se tornam importantes, embora nunca querendo ensinar, mas sim conscientizar, a Literatura permite “ao leitor sair da sua ‘bolha’ e olhar ao seu redor”. O escritor até brincou dizendo que os “livros eram por isso tão importantes quanto as batatas”, numa alusão tanto literal (precisamos todos de nos alimentarmos com comida) quanto figurada (precisamos da literatura que nos alimenta o espírito, a literatura aqui representada pelo seu conto cuja intriga se desenvolve em torno de vários vegetais)! O conto foi escrito com o auxílio de várias analepses e prolepses (as histórias dos dois protagonistas misturam-se para se encontrarem no final do conto). Segundo Nuno Gomes Garcia esse é o estilo da sua escrita, o escritor reconheceu que várias obras suas são escritas dessa forma. Quando lhe perguntámos se não lhe parecia que as analepses e as prolepses podiam deixar o leitor confuso, ele disse “Não! Parto sempre do princípio que o leitor é inteligente!”. Recordou-nos ainda que as histórias deixam de ser dele, do escritor, a partir do momento em que o leitor as lê e as interpreta como deseja. Acerca da ideia de base do conto e da antropomorfização das personagens-vegetais, o autor revelou ter-se inspirado num desenho animado, que os filhos costumam ver, oriundo da antiga União Soviética, chamado Cipoline, onde as classes sociais são abordadas através da metáfora dos vegetais: “Se escolhi legumes para representar pessoas era para ser um pouco diferente, algo iconoclasta até” disse o autor rindo. “O Sobrinho” é assim um conto de intervenção que sensibiliza o leitor para o tema do racismo e da xenofobia. O autor usa vegetais em vez de nacionalidades e etnias, e o leitor, por sua vez, tem de relacionar cada vegetal com uma nacionalidade. E assim surge a história de cebolas que emigram para o país das cenouras. É nesse contexto que surge o sofrimento causado pela xenofobia. Imaculada, uma cebola, emigra para o país das cenouras onde vai morar com o marido, Pacífico. Ela trabalha como empregada nas casas das cenouras, acumula dinheiro e compra imóveis. Cândido, o sobrinho de Imaculada, também emigra, várias décadas mais tarde, para o país das cenouras para trabalhar nas obras por causa do desemprego elevado no seu país. No final do conto, este sobrinho Cândido é agredido por cenouras numa manifestação xenófoba na qual Imaculada participara; apesar de imigrante, Imaculada adaptou-se de tal modo ao país de acolhimento que já quase deixa de ser cebola, já é quase uma cenoura. Durante a nossa conversa com o autor, pudemos confirmar a ideia de que as cebolas podem representar metaforicamente, com as suas múltiplas camadas, a diversidade étnica do povo português: “Portugal sempre foi uma terra de passagem e de encontro entre a Europa e a África, e ali se misturaram genes, religiões e línguas, criando-se uma grande variedade de culturas e de gentes” disse. As camadas das cebolas também podem evocar as várias profissões que os portugueses conseguem, e aceitam, ter no país de acolhimento. Imaculada e Cândido têm profissões muito comuns na Comunidade portuguesa em França, trabalhando na limpeza e nas obras. As cenouras do conto podem ser assimiladas aos franceses, pois são altas e são por vezes snobes, julgando-se superiores aos demais. Um aspeto em que se insistiu bastante foi na escolha do nome das suas personagens. Por exemplo, Pacífico é tudo menos pacífico, é antipático e um pouco violento. A Imaculada vai a manifestações para expulsar imigrantes quando ela própria é uma imigrante. Estes nomes, em desacordo com as personalidades das personagens, denunciam uma certa hipocrisia que pode existir no mundo da imigração. Mas não é o único fator que o conto denuncia. Também critica a opressão política durante o regime ditatorial salazarista que forçou portugueses a emigrar, portugueses que defendiam as suas ideias e foram obrigados ao exílio, jovens portugueses que tentaram fugir da guerra colonial. Lendo o conto, apercebemo-nos de várias situações de pobreza das personagens retratadas: o escritor referiu o momento em que tentou mostrar a emoção da personagem Imaculada quando se muda para uma casa com casa de banho onde o autoclismo funciona, “para muita gente pobre, sem nada, ter um sanitário que funciona pode ser um sonho tornado realidade”. Nuno Gomes Garcia escreveu outras obras de intervenção, como por exemplo o livro “O Homem domesticado”, que será traduzido e publicado em França em 2021, onde troca “os tradicionais papéis atribuídos ao homem e à mulher pela nossa sociedade ainda demasiado patriarcal”, assim sensibilizando para o tema da igualdade de géneros. Segundo o autor, a Literatura é uma forma de desenvolver o cérebro e de criar um espírito crítico. Sem literatura não conseguimos distinguir o certo do errado e acreditamos em toda a informação que chega até nós. Relembrou-nos que, durante o salazarismo, em Portugal, a escolaridade obrigatória abrangia poucos anos o que favoreceu a crença nas informações trasmitidas pela ditadura, a população jovem era facilmente manipulada, havia até certo ponto uma forma de “lobotomia social praticada pelo Estado Novo”. O escritor português também nos falou dos autores que o inspiram, como George Orwell. Gosta muito do livro do autor britânico, “1984”, um livro que o fez pensar bastante na adolescência. Admira Saramago e o seu estilo de escrita, especialmente a maneira como toma liberdades com as regras de pontuação. Revelou ainda que gosta de escrever obras “de estrutura não linear, construídas como puzzles” que pedem um real trabalho de leitura. Na sua opinião, a leitura é a melhor maneira de “muscular o cérebro”. O encontro virtual com o autor foi muito interessante e permitiu sensibilizar os alunos para os temas da igualdade de género, do racismo e da xenofobia. Além disso, os alunos puderam conhecer o estilo de escrita e o ponto de vista, sobre a sociedade atual, de um autor português que reside, tal como eles, em França. A obra literária de Nuno Gomes Garcia pode ser classificada como literatura de intervenção, tratando os dogmas da sociedade atual. É um escritor iconoclasta porque destrói imagens, dogmas. Pudemos também entender a importância da leitura na vida de uma pessoa! Aliás, foi dessa forma que o escritor se despediu da nossa turma relembrando a importância de ler, ler muito! Turma do 10º ano da Secção Portuguesa do Liceu Internacional de St Germain-en-Laye sob a orientação da Professora Isabel Pereira da Costa [pro_ad_display_adzone id=”37509″]