LusoJornal | Dominique Stoenesco

Livros: Entrevista com Paulo Martins sobre “As Diabruras de Orfeu”

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No passado mês de março, no bairro de Montparnasse, em Paris, tivemos o privilégio de conversar com o poeta, romancista, letrista de canção popular, cronista e ensaísta Paulo Martins sobre seu livro “As Diabruras de Orfeu” (Editora Lacre, 2020). Nascido em Ipiaú, na Bahia, Paulo Martins reside atualmente em Lisboa.

Na entrevista que nos concedeu, Paulo Martins nos conta como nasceu este romance, escrito numa incomparável arte de narrar, intimamente ligado à sua própria vida marcada pela música, pela literatura e pelas lutas políticas contra a ditadura militar, das quais carrega até hoje sequelas físicas. Uma grande parte do livro é dedicado a três vultos da música e da canção: Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Jacques Brel, por quem o autor cultiva uma admiração especial.

 

Qual a razão e qual o sentido desse título inspirado no mito de Orfeu e Eurídice?

Este título nasceu por acaso, como, aliás, todo o livro. Lendo um artigo de Vinícius de Morais sobre sua peça Orfeu da Conceição, baseada no mito grego, vi que vários escritos que eu tinha prontos para um novo romance de minha trilogia sobre os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil tinham tudo a ver com este mito, que desde a infância me encantara. Então, mudei o roteiro do livro. O termo “diabruras” foi extraído de minhas peripécias infantis, nas quais Orfeu aparecia como um anjo para me trazer uma espécie de delírio no mundo da música, uma coisa apaixonante. Assim nasceu o livro, que mistura memórias musicais e políticas e ensaio: uma visão da MPB – música popular brasileira – do ponto de vista do mito de Orfeu e Eurídice.

 

Logo na primeira frase do livro, você diz: “Passei a vida perguntando-me por que razão eu não me tornei compositor”. Pode nos falar sobre este aspecto importante de sua vida?

Por influência de minha mãe, que gostava muito de cantar, desde cedo me apaixonei por música. Meu sonho de adolescente era tocar um instrumento e me tornar compositor, de preferência clássico. Mas minha família não tinha posses e este sonho foi sendo jogado para a frente. Mesmo assim, vivi boas experiências no âmbito musical: cantorias boêmias, participação em corais e até uma iniciação teórica, no colégio, pois naquela época estudávamos canto orfeônico e solfejo, disciplinas obrigatórias. Só vim a ter um violão aos 30 anos. E outros fatores foram se formando para retardar a realização daquele sonho, entre eles minha imersão na luta política libertária e posterior surdez, fruto de torturas nos cárceres da ditadura. Também era apaixonado por literatura e poesia, e, com o advento da ditadura militar, emergi de corpo e alma na resistência. Era coisa demais para dar conta. Porém, sem a ajuda da música eu não teria feito nada, nem me tornado escritor, pois não há revolução sem canções e nem literatura sem música, já que elas são interdependentes.

 

Nos anos 1960-70, a MPB havia se tornado uma importante expressão de lutas contra a ditadura militar. Pode relembrar, brevemente, este período?

Este foi um dos períodos mais ricos da cultura musical no Brasil, década do renascimento do samba e do apogeu da bossa-nova. A melodia e a riqueza harmônica de nossa canção, que já vinha de um passado glorioso com o samba, o samba-canção, o choro, o frevo e o baião (Luís Gonzaga), a levaram a ser uma das mais tocadas nas rádios e no show-business mundiais. Com os famosos festivais da canção (1965/1967), compositores mais antigos, como Dorival Caymmi, Pixinguinha, João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Morais foram relançados e abriram caminho para novos, como Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros; e surgiram grandes intérpretes, como Elis Regina e Jair Rodrigues, criadores do inesquecível programa de TV O Fino da Bossa. A ditadura militar de 1964, com a censura e a perseguição política da oposição, forçou nossa canção a se transformar naturalmente num instrumento de combate. Os próprios festivais que se seguiram viraram atos de protesto. Canções poderosas eram cantadas nas manifestações pela democracia e o fim da ditadura. Movimentos de contestação, como a Tropicália, surgiram aqui e ali como derivações desses gritos de liberdade. A canção se juntou ao cinema e ao teatro, num uníssono grito de liberdade. A Noitada de Samba, do Teatro Opinião, no Rio, trouxe as favelas para o seio da metrópole, com um novo palco de resistência, que eternizou sambistas como Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Zé Keti, Monarco, Martinho da Vila, João do Vale e outros; e dezenas de grandes intérpretes como Clementina de Jesus, Nara Leão, Maria Betânia, Beth Carvalho, Gal Costa, Clara Nunes…

 

O segundo movimento do livro (Staccato) é dedicado a três vultos da música e da canção: Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Jacques Brel. Este último, por quem você cultiva uma admiração especial, está presente em quase todas as páginas. Como você descobriu a canção francesa e como explica essa paixão por Brel? Você até considera que “Ne me quitte pas” é “a mais bela canção de amor de todos os tempos”.

Sempre fui apaixonado pela cultura francesa. Na época em que fiz o curso secundário, o francês tinha mais importância do que o inglês, tanto que se começava a estudá-lo já no primeiro ano. Eu tinha um professor, Antonin, que dava ênfase à literatura e à poesia em suas aulas. Ainda me lembro dele interpretando uma fábula de La Fontaine. Então, desde cedo me interessei pelo francês. Quando ouvi as primeiras canções fiquei empolgado em decorá-las, como era meu costume. Eu já cantava a Marselhesa, este hino incomparável, do começo ao fim. E recitava de cor poemas como “Chanson d’autonne”, de Paul Verlaine. A primeira canção francesa que aprendi foi “Sous le ciel de Paris”, que minha mãe sabia um pedacinho. Depois veio Edith Piaf, Gilbert Bécaud, Charles Trenet, etc. Só ouvi Brel em meados da década de 1960, e me apaixonei de cara. Era algo revolucionário. Mais tarde, tive uma namorada francesa que me presenteou com um livrinho da coleção “Poètes d’aujourd’hui”, com a maioria das canções, uma entrevista e um ensaio de Jean Clouzet sobre a obra de Brel. Descobri que a vida do compositor se combinava com o meu modo de pensar e meus sonhos de aventura. Minha paixão particular por “Ne me quite pas” decorreu de minhas dores de amor, após o rompimento dramático com essa namorada: a repressão e a vida clandestina se encarregaram de interromper uma história de amor que deveria ter sido eterna.

 

No final do livro, numa conversa imaginária com Vinicius, Chico e Brel, você diz : “Sonhar não está muito na moda. As utopias estão sendo torpedeadas de forma inclemente, meus amigos”. Mas você ainda espera na música…

Ao narrar a história da morte de Orfeu, faço uma analogia com os tempos de hoje. Orfeu tinha poderes extraordinários, seu canto movia montanhas. Só não era capaz de resistir a um barulho estridente. Ele desdenhava as Bacantes, após a morte de Eurídice, e elas se vingaram dele com seus gritos alucinantes, que abafaram o seu canto e o imobilizaram. Depois o esquartejaram. O barulho, portanto, é o símbolo da antimúsica. E está tomando conta da vida moderna, pois até a música está perdendo para ele, pelo uso de meios inadequados de reprodução, instrumentos que desafiam os tímpanos e ausência de musicalidade dos falsos compositores. As Bacantes modernas querem matar Orfeu novamente. Então, apelo a todos os compositores a erguerem seu canto o mais sonoro possível, não permitindo o predomínio dos gritos lancinantes dos que querem destruir a música. Dirijo-me particularmente a Vinícius, Chico e Brel por serem meus compositores mais íntimos. O fim da música seria um desastre. Ela é um raio de esperança, o símbolo de todas as utopias, o segundo ar que respiramos.

 

“As Diabruras de Orfeu” será apresentado pelo autor, no sábado 14 de maio, às 13h00, no restaurante Brasuca, no Bairro Alto, em Lisboa.

 

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