Opinião: A inquisição silenciosa das redesCristina Branco·Opinião·25 Junho, 2025 Sobre mulheres expostas, julgadas e condenadas com emojis agressivos, likes insidiosos e algoritmos, uma história antiga em roupagem moderna. Virginia Woolf escreveu que, para criar ficção, uma mulher precisa de dinheiro e de um quarto só seu. O problema, no século XXI, é que esse quarto tem janelas por todos os lados, câmaras ocultas e milhares de olhares prontos a julgar-lhe os lençóis, a roupa, os pensamentos, os seios, os silêncios. O que antes era retiro tornou-se montra, e os olhos que espreitam já não o fazem por detrás da cortina, mas em público, com likes, emojis e hashtags. O assédio que hoje se passa nas redes sociais não é fenómeno recente, é a reincarnação digital de uma velha prática cultural, agora envernizada pela estética da modernidade. O que hoje se faz a uma mulher no Instagram ou no X fazia-se a outras no século XIX, nas vielas de Montmartre ou nas vitrinas iluminadas de Amesterdão. A diferença é que, em vez de campainhas e cortinas vermelhas, há filtros, comentários e um algoritmo que decide quem merece visibilidade e quem será punida por se mostrar. A montra não desapareceu, apenas mudou de lugar. A mulher exposta ao desejo masculino continua a ser tratada como objeto. E quando ousa ter opinião, ousa pensar alto, ousa ser inteligente ou imperfeita, é sancionada. O hábito de desvalorizar intelectualmente as mulheres, ao mesmo tempo que se as exibe como troféus, persiste. Concede-se-lhes liberdade, sim, mas apenas aquela que serve os desejos masculinos. Uma liberdade de contornos estreitos, onde se pode ser sexy, mas não subversiva, sensual, mas não complexa, bonita, mas não autónoma. Camille Paglia recordou que as sociedades sempre temeram a mulher que se governa a si mesma. Para isso, criaram estratégias de controlo, da religião à psiquiatria, da arte à pornografia, hoje através da tecnologia. As redes sociais são, muitas vezes, um bordel moral, onde se mede o valor da mulher pelo número de seguidores e se dita o seu destino segundo o grau de obediência aos caprichos do olhar alheio. Aquela que se recusa a sorrir, a exibir-se, a corresponder, é descartada ou atacada. O internamento compulsivo foi, durante séculos, uma das formas mais brutais de silenciar mulheres que desviavam da norma. Le Bal des Folles, romance de Victoria Mas e posteriormente filme, denuncia essa tradição esquecida: mulheres internadas não por doença, mas por desobediência, tristeza, desejo ou simplesmente por serem inconvenientes aos olhos do pai, do marido ou da sociedade. No hospital psiquiátrico da Salpêtrière, em Paris, encenava-se anualmente um baile em que essas “loucas” eram exibidas como curiosidades, objetos de fascínio e escárnio para a elite parisiense. A loucura era, muitas vezes, uma sentença aplicada a mulheres que não queriam casar, que choravam demais, que liam em excesso, que falavam alto ou recusavam o lugar que lhes era atribuído. Mais do que diagnóstico, tratava-se de punição simbólica: a liberdade feminina tratada como sintoma. E ainda hoje, com outros nomes e métodos, o mundo continua a patologizar a mulher que recusa ser domada. Há um fenómeno particularmente insidioso, a relativização do insulto sexista dirigido a mulheres consideradas bonitas. Como se a beleza funcionasse como licença tácita para a invasão, como se fosse uma autorização implícita para que desconhecidos opinem, comentem, julguem e objetifiquem. A lógica é perversa: se és bela, estás em dívida para com o olhar dos outros. Há quem se sinta, por isso, no direito de comentar uma página pessoal como se fosse pública por natureza, ignorando a intimidade por detrás da imagem, o ser por detrás do ecrã. O elogio transforma-se em armadilha, o comentário, numa forma de posse simbólica. No fundo, trata-se do velho pacto patriarcal, oferece-se admiração como quem exige servidão. Entre mulheres, repete-se muitas vezes a lógica da competição imposta. A inveja feminina, longe de ser falha moral, é reflexo condicionado de um mundo que ensinou a ver na outra uma rival, e não uma aliada. Melanie Klein interpretaria esse ódio como gesto de destruição do objeto amado. Não se odeia uma mulher bonita apenas por o ser, mas porque ela encarna um ideal inalcançável, uma promessa de reconhecimento que a própria sente não ter. As culturas moldam os códigos do assédio. Na América Latina, ele surge com palavras doces e mãos leves demais. No Médio Oriente, com leis e véus. Na Europa, com ironia polida e discurso pretensamente racional. Mas o subtexto é invariável, controlar o corpo e o pensamento da mulher. A liberdade oferecida é ilusão servida em bandeja dourada, como nas vitrinas de Amesterdão, onde o vidro é fronteira simbólica entre desejo e domínio. Na indústria pornográfica, a mulher: la chienne, la salope, la chaudasse, la pute. Os homens? Le séducteur d’enfer! O cinema, por sua vez, ajudou a construir e a perpetuar fantasmas masculinos disfarçados de génio, paixão ou crise existencial. Luis Buñuel, por exemplo, com o seu olhar onírico e surrealista, projetou mulheres como enigmas a decifrar ou ameaças a neutralizar, moldando arquétipos que ainda hoje habitam o imaginário coletivo. Noutros autores, de Bergman a Godard, de Polanski a Allen, a figura masculina atormentada e brilhante surge como desculpa estética para comportamentos manipuladores, misóginos ou autodestrutivos, apresentados como expressão de profundidade emocional ou liberdade artística. A câmara transforma o abuso em linguagem, a obsessão em arte, e o sofrimento feminino em pano de fundo para o drama masculino. Muitas dessas obras tentam ainda validar a violência simbólica ou literal, ao construírem personagens femininas permanentemente expostas, despidas, literal ou figurativamente, moldadas segundo fantasias masculinas de submissão, disponibilidade ou “desejo de ser puta”, como se a autonomia se expressasse apenas através da auto-objetificação. Esses mitos visuais, reproduzidos e celebrados, oferecem uma espécie de alibi cultural para a toxicidade afetiva, reforçando uma narrativa onde o homem sofre e a mulher é o espelho desse sofrimento, e não um sujeito pleno, com vontade e voz próprias. Ainda assim, nas artes, há vozes que resistem. A música Vampire, de Olivia Rodrigo, os livros de Elena Ferrante, o cinema de Céline Sciamma, tudo revela um desejo profundo de recusar, de sair da vitrine, de incendiar a montra. Séries como Desperate Housewives e Why Women Kill ilustram, com humor ácido e brutalidade contida, como o papel da mulher, mesmo nos subúrbios aparentemente perfeitos, continua a ser moldado para servir, calar, agradar e reprimir, até que algo rebente por dentro. I May Destroy You, de Michaela Coel, mostra como a violência sexual e digital são faces da mesma moeda: o corpo da mulher como território disputado, colonizado, explorado. Nem a psicanálise escapa a este debate. Lacan falava do olhar como estrutura de poder. Nas redes, o olhar masculino continua a organizar o desejo e a validação. “Ela é demais”, diz-se, mas o que se quer dizer é, “Ela é demais para mim, e isso é provocação”. A questão não é apenas o assédio, é a estrutura simbólica que o naturaliza. Não se trata de vigiar os utilizadores das redes, mas de repensar a cultura que os forma. Até que ponto estamos todos, involuntariamente, a sustentar bordéis invisíveis com os nossos cliques? Quando seremos efetivamente livres e respeitadas por essa liberdade? Se o palco está iluminado, e todos esperam que ela sorria e se sujeite ao papel que lhe querem impor, que se recorde de Louise Michel, a incendiária da Comuna de Paris, que nos deixou este aviso corajoso: “Notre place dans l’humanité ne doit pas être mendiée, mais prise.” A mulher não deve pedir lugar, deve tomá-lo. Mesmo que isso implique derrubar preconceitos e exigir respeito por aquilo que quer ser em detrimento do que a querem fazer. . Cristina Branco Escritora