Opinião: A fonte mágica e outras ilusões


Há uma ideia quase infantil de que o futebol, esse jogo de infância alargada, vive num universo à parte, onde os milhões que nele circulam caem do céu como bênçãos laicas, sem origem nem consequência.

Como se o campo fosse um santuário impermeável à realidade. E como se o dinheiro ali não tivesse peso, nem história.

Mas não há milagres na economia do futebol.

Há fluxos financeiros que atravessam fronteiras à velocidade do streaming, há patrocinadores que se escondem atrás de marcas de refrigerantes ou apostas online, e há paraísos fiscais onde repousam fortunas em nome de fundações generosas e gestos de aparente filantropia. No centro do relvado, brilham os heróis do povo. Não por aquilo que fazem dentro de campo, mas pelo enredo cuidadosamente construído à volta deles.

De tempos a tempos, um desses ídolos decide – ou alguém decide por ele – fazer um gesto nobre: doar uma parte simbólica do seu rendimento a uma causa social. O mundo aplaude, os jornais escrevem editoriais enternecidos, as redes sociais rendem-se. E ninguém se pergunta de onde vem, afinal, esse dinheiro.

A resposta, muitas vezes, está em esquemas de evasão fiscal meticulosamente desenhados, que desviam milhões dos cofres públicos, os mesmos cofres que deveriam sustentar escolas, hospitais e programas sociais. O gesto generoso, que tanto encanta o público, é, com frequência, apenas o restolho dourado de uma operação que começou com fraude e terminou com um sorriso para a câmara.

Eduardo Galeano, que sabia olhar o futebol com ternura e lucidez, escreveu: “El fútbol profesional asume la lógica de la industria del espectáculo, donde lo que no produce no vale, y lo que no vende no existe”.

É essa lógica que se impôs, silenciosamente, como norma. O jogador deixa de ser pessoa para ser produto, a paixão transforma-se em mercadoria, e o jogo em vitrina.

Enquanto isso, o mundo lá fora endurece.

O número de deslocados cresce, as guerras prolongam-se, os sistemas públicos colapsam. Mas dentro do estádio, tudo parece suspenso.

O tempo, a ética, a responsabilidade.

E o povo – esse povo a quem se nega quase tudo – continua a ver no futebol uma forma de esperança.

Talvez porque, mesmo falsa, a esperança ainda seja mais suportável do que o vazio.

Enquanto isso sobe o ódio contra quem procura futuro melhor fora das fronteiras, quem foge de conflitos provocados por estes esquemas financeiros.

É nesse terreno fértil que crescem os falsos profetas: figuras públicas que falam de igualdade enquanto vivem em fortificações; que clamam por justiça social enquanto assinam contratos blindados em zonas francas. E o mais inquietante é a eficácia dessa encenação.

Porque há algo de profundamente humano na nossa necessidade de acreditar. Mesmo contra a evidência. Mesmo contra o bom senso.

Edgar Morin, numa das suas observações mais desassombradas, escreveu: “L’opulence des uns fait la misère des autres. L’économie ne se déploie pas dans le vide moral”.

Mas poucos parecem escutar. O espetáculo é ruidoso, brilhante, eficaz.

E o ruído vende melhor do que o pensamento.

O futebol não é o problema. O problema é o que lhe fizeram. Ou, talvez, o que nós deixámos que lhe fizessem. A forma como transformámos o jogo num palco de encobrimento, onde se glorificam atos mínimos como se fossem gestos heroicos, e se silencia tudo o que perturba a harmonia da narrativa.

O relvado permanece verde. Mas em redor, a paisagem escurece.

E por mais que se grite “golo”, há cada vez mais silêncios que se instalam, profundos, incómodos, impossíveis de ignorar por muito tempo.

Talvez um dia, entre um canto e um fora de jogo, tenhamos finalmente coragem de perguntar: de que fonte mágica brota o dinheiro do futebol?

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Cristina Branco