Abade Faria: um dos Portugueses mais conhecidos em França no início do século 19

Quem leu o romance “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas, já se apercebeu do nome “português” de um dos personagens secundários da obra: o Abade Faria.

No livro, o Abade Faria é um padre italiano, condenado em 1811 por crime político e que é preso no Château d’If, situado na ilha de If, ao largo de Marseille. Na prisão encontra Edmond Dantès. Faria é cultivado, científico e poliglota, é considerado doido pelos guardas do forte. Durante longos anos, o Abade Faria e Edmond Dantès montam uma estratégia para fugirem da cadeia, mas morre de um ataque cardíaco, depois de ter revelado a Dantès o lugar onde está enterrado o seu tesouro, na ilha de Monte-Cristo.

Efetivamente, ao largo de Marseille há uma pequena ilha – a ilha de If – com um forte que serviu de prisão durante muitos anos, mas na lista dos prisioneiros do forte não consta o nome de nenhum Abade Faria.

Ora, o Abade Faria existiu realmente, e viveu em Marseille. Alexandre Dumas conheceu-o e inspirou-se dele para criar o personagem. Era um padre elegante, alto, nascido em Goa, na Índia, em maio de 1756, e chamava-se José Custódio de Faria. Morreu em Paris, no dia 20 de setembro de 1819. Fez no ano passado 200 anos, mas não inspirou nenhuma comemoração particular, pelo menos que se saiba!

Sabe-se que era filho de Caetano Vitorino de Faria e de Rosa Maria de Sousa, um casal português que vivia naquela altura em Bardez, Candolim, Goa. Aliás, sabe-se também que os pais divorciaram para se dedicarem inteiramente à religião.

Quanto a José Custódio de Faria, foi estudar para Lisboa em 1771 e depois acabou um curso de teologia em Roma, cidade onde viveu até 1780. Foi em Roma que foi ordenado padre.

Quando regressou à Índia, integrou um grupo de religiosos e de militares mestiços, que se sentiam discriminados nas suas carreiras por causa das suas origens goesas, em prol dos colonizadores portugueses. A chamada “Conspiração dos Pintos” foi reprimida com violência. Para servir de exemplo, a maior parte dos conspiradores foi levada para a prisão de São Julião da Barra, em Portugal, mas o Abade Faria escapou às autoridades portuguesas e embarcou para França. Nunca mais regressou à Índia.

Em França sabe-se que aderiu de imediato aos ideais da Revolução Francesa de 1789 e foi aliás Comandante de uma secção do 10 Vendémiaire, contra a Convenção, desta vez fortemente reprimida por Barras e por Napoleão.

O Abade Faria estava em Marseille porque foi nomeado professor de filosofia no atual Lycée Thiers. Mas, mais do que a filosofia, interessava-se pelo magnetismo animal e pela hipnose. Foi nestas áreas que fez escola e ainda hoje se ensina o “Fariismo”.

O Abade Faria foi o primeiro a estudar a hipnose e, como se pode compreender, naquele tempo estas práticas eram muitas vezes diabolizadas, tanto mais se praticadas por um homem da Igreja. Aliás, dizem que foi por isso que teve de pedir a sua transferência para o Liceu de Nîmes, onde ensinou também a filosofia durante alguns anos.

Em 1813, o especialista francês do Magnetismo animal era Marie-Jacques de Chastenet, o Marquês de Puységur, com quem o Abade Faria estudou. Mas depressa ultrapassou o mestre.

Conta-se que uma vez, num serão numa casa de nobres em Marseille, lhe trouxeram uma galinha para hipnotizar, mas a experiência acabou por não resultar, criando risadas e traça nos presentes. Nas suas memórias, Chateaubriand conta que num serão em casa da Marquesa de Custine, o Abade Faria anunciou que conseguia matar um canário por hipnose, mas a experiência também não resultou e o Abade teve de abandonar a tertúlia.

Naquela altura é provável que nem todas as experiências tenham funcionado, tanto mais que no contexto destes serões, as condições de hipnose podiam não estar todas reunidas, mas posteriormente o Abade Faria foi considerado um precursor destes estudos.

Criticou bastante a teoria dita de “fluido magnético” que era proposta na altura por Franz Anton Mesmer, em oposição à sua teoria de hipnose por sugestão.

Aliás, quando veio para Paris transpôs os estudos que tinha feito sobre animais, para os humanos e abriu um Consultório de Magnetismo que teve um autêntico sucesso com uma clientela considerável. Mas, mais uma vez, foi fortemente criticado pelos mais conservadores, que o tratavam de doido e de bruxo.

As teorias do Abade Faria foram devidamente argumentadas com fundamentos científicos. Foi o primeiro a evidenciar o caráter puramente natural da hipnose e o primeiro a descrever detalhadamente e cientificamente a metodologia, os efeitos do magnetismo e afirmava mesmo que o magnetismo por sugestão era um tratamento recomendado para doenças nervosas.

Em Paris foi Capelão de um Convento religioso e viveu na rue Ponceau, perto da rue Réaumur. Antes de morrer, publicou uma obra que ainda hoje é referência “De la cause du sommeil lucide”. Foi aliás reeditada em 2005 pela L’Harmattan. Trata-se do primeiro de quatro volumes que o Abade Faria escreveu antes de morrer, mas os três outros acabaram por nunca serem editados. Diz-se que falavam da interpretação dos sonhos, com noções de psicanálise, que mais tarde viriam a ser trabalhadas por… Sigmund Freud.

Em Panaji, no Estado de Goa, na Índia, tem uma estátua perto do “The Old Secretariat Building” e em Portugal tem duas ruas com o seu nome, uma no Areeiro, em Lisboa, e outra em Mem Martins, Sintra. Em Marseille também há uma rue Abbé Faria. Em 2006, para celebrar os 250 anos do seu nascimento, os correios portugueses lançaram um selo em sua honra.

A Comunidade portuguesa de França ainda não o “descobriu”. Pensava-se que no ano do “bicentenário” alguém se lembraria dele… mas não!

 

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LusoJornal