Home Cultura “Dona Zezinha”, de Altina Ribeiro, traduzido para português: “Dona Zezinha considerava que os outros rapazes eram inferiores ao filho”Nuno Gomes Garcia·27 Junho, 2022Cultura [pro_ad_display_adzone id=”37509″] Originalmente publicado em francês com o título “Dona Zézinha, la vie peu ordinaire d’une institutrice”, o quarto livro de Altina Ribeiro acaba de ser publicado em português pela Editora Oxalá. Inserido no contexto do ensino e da educação salazaristas, “Dona Zezinha, a vida singular de uma professora” evoca a difícil relação entre Carlos Alexandre e a sua mãe, Zezinha, que foi professora durante 37 anos, de 1937 a 1971, nas aldeias do interior português. Zezinha, uma salazarista convicta, viu-se na obrigação de contrariar as suas crenças fascistas quando, desejando poupar o filho ao serviço militar e à guerra colonial, o enviou clandestinamente, a salto, para França. Altina Ribeiro fala-nos do seu livro. Depois de publicar este “Zezinha” em francês, em 2017, o que significa para ti vê-lo agora traduzido e publicado na tua língua materna? Foi o Carlos Alexandre, filho da professora, e também a pessoa que me contou os percursos dele e da mãe, que me pediu para traduzir o livro para português. Ele estava empenhado em ver a história traduzida para que ela pudesse ser lida pelos familiares e amigos que não leem francês. Foi também por essa razão que traduzi o meu primeiro livro, “Le Fado pour seul bagage”, cujo título em português é “De São Vicente a Paris”. Também me foi pedida a versão portuguesa pelos leitores que o queriam oferecer aos pais e aos filhos para que eles pudessem descobrir a história na língua materna dos pais e dos avôs. Além disso é muito importante que estas obras sejam distribuidas, apresentadas e lidas em Portugal. Em 2019, já depois de publicares “Zezinha”, foste visitar a região que retratas no livro. Que sentimentos te trouxe essa visita? Mudaste alguma coisa na passagem da versão francesa para a portuguesa devido a essa visita? Foi com muita curiosidade que, em agosto de 2019, descobri a região retratada no livro. Aliás, era uma das raras regiões que não conhecia e visitei-a com muito gosto na companhia do Carlos Alexandre e da esposa. E foi também com muita emoção que conversei com os ex-alunos de Dona Zezinha e colegas do filho. Pessoas que encontrámos durante o nosso passeio pelos sítios onde ensinou a professora. As aldeias estão agora despovoadas, mas como passámos por lá durante o verão, os emigrantes e aqueles que foram viver para as cidades estavam de passagem. Em frente à escola, vimos mais gente porque era o dia da festa. Depois desses encontros, não mudei nada ao texto do livro, mas acrescentei testemunhos de ex-alunos que aceitaram falar-me da professora, do seu esposo, do seu filho e da sua irmã mais nova. Essas conversas foram muito interessantes e batem certo com aquilo que me contou o Carlos Alexandre. Na verdade, esses testemunhos completam a obra que, por isso, passa a ser mais do que uma mera tradução. Ao prefácio do Dominique Stoenesco, que já existia na versão francesa, acrescentaste um outro da autoria de Júlio Marques. Conta-nos como o conheceste. Quando conversei com os ex-alunos da professora, em 2019, tomei nota do que me contaram. Antes de começar a traduzir o livro, pesquisei na internet, sempre à procura de mais testemunhas, e foi assim que conheci o autor do segundo prefácio. O Júlio Marques foi colega do Carlos Alexandre no seminário, e a esposa foi aluna da professora. Depois da nossa conversa por telefone, enviei-lhes um exemplar do livro em francês. Depois da leitura da obra, o Júlio Marques, ex-professor de filosofia, escreveu um lindo texto sobre o livro e publicou-o no seu blog. Daí, surgiu-me a ideia de lhe pedir para usar um extrato desse texto como prefácio, o que ele aceitou com muito gosto. Concordou também em apresentar o livro em Vilar Maior, perto de Sabugal, uma das aldeias onde ensinou a professora e onde nasceu o Carlos Alexandre. A apresentação terá lugar dia 13 de agosto, pelas 17 horas. Espero ter a oportunidade de conhecer as pessoas com quem falei por telefone, de rever aquelas que aceitaram falar comigo pessoalmente e, talvez, de conhecer outras. O livro também será apresentado por Artur Coimbra, Chefe de Divisão de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Fafe. O evento terá lugar na Biblioteca Municipal, dia 22 de julho, às 17h00. Terei também o prazer de o apresentar na Biblioteca Municipal de Chaves. O evento é organizado por Céu Barros e a obra apresentada por Ernesto Areias, um amigo advogado e escritor. A professora Zezinha era uma mulher que aceitou o regime fascista em vigor na época em Portugal. Fala-nos um pouco dela. Sim, a professora aceitou o regime fascista em vigor na época em Portugal. Até tinha a carta da Legião portuguesa que está anexada no fim do livro. Mas quando a idade do filho se aproximou do momento em que devia ir para a tropa, a mãe decidiu mandá-lo a salto para França. Tinha medo que ele fosse enviado para as colónias africanas defender o império de Salazar. Como a crença cristã que lhe tinha sido inculcada por aqueles que baniam qualquer outra ideologia, nenhum regime, a não ser o que estava estabelecido pelas autoridades portuguesas, era imaginável aos olhos de Zezinha. No entanto, o medo de perder o filho na guerra foi mais forte e, pela primeira e única vez da sua vida, foi contra as regras estabelecidas, enviando o rapaz clandestinamente para fora de Portugal para que escapasse ao serviço militar. Ela foi muito exigente com o seu filho, nomeadamente no que dizia respeito à sua educação. Esse traço da sua personalidade tem que ver com a mentalidade da época ou era algo intrínseco à sua personalidade? Sim, a mãe do Carlos Alexandre foi muito exigente com os alunos, mas ainda mais com o filho. Esse traço da sua personalidade tem que ver com a mentalidada da época, mas era também algo intrínseco à sua personalidade, muito rígida e exigente. Por vezes, ele obedecia à mãe, mas também precisava de lhe desobedecer porque era para ele uma maneira de sobreviver. Qual foi o papel do pai de Carlos na sua educação? O pai, muito ausente, foi menos exigente com o Carlos Alexandre. Passaram pouco tempo juntos porque o filho, desde tenra idade, aos três anos, acompanhava a mãe para a escola. Por vezes, ficavam longe de casa porque a professora dava aulas em várias aldeias entre a Guarda e o Sabugal. Nesse caso, o pai ficava em Vilar Maior com a filha mais nova e a mãe da Zezinha, que tratava da netinha. O Carlos Alexandre vivia então com a mãe nas aldeias onde ela ensinava. As relações entre eles foram assim mais complicadas. A professora não era só exigente com o filho durante as aulas, mas também o era em casa. O rapaz não podia ir brincar com os amigos. Para ela, o Carlos devia passar o tempo com o nariz nos livros e cadernos. A mãe queria que ele fosse o melhor e exigia que não brincasse com os outros rapazes que ela considerava inferiores ao filho. A viagem de Carlos para França foi marcante. A tua própria experiência serviu-te de auxílio durante a escrita desse episódio? A viagem de Carlos Alexandre para França foi muito diferente da minha. Eu era mais nova, tinha nove anos, e vim com os meus pais e a minha irmã mais velha. Por isso, deixei-me guiar por eles. Não me dei verdadeiramente conta do que se passava. Quando escrevi a minha história, foram os meus pais que me contaram a viagem porque eu tinha poucas lembranças dessa passagem difícil. Quanto ao Carlos Alexandre, ele tinha dezoito anos e estava mais consciente daquilo que se passava. Além disso, ele veio sem a família e atravessou a fronteira sozinho, sendo ele o único passageiro clandestino. Ao chegar à primeira fronteira, andou mais de duas horas a pé e encontrou o carro com os outros passageiros, numa aldeia espanhola. Dessas horas, o jovem guardará memórias aterradoras. Ele andou esse tempo todo a correr pelos campos, a cair, a levantar-se imediatamente, a tropeçar novamente antes de subir paredes, passar por vedações de arame farpado e atravessar pântanos e regatos, cheio de medo de ver um képi ou outra pessoa qualquer. [pro_ad_display_adzone id=”46664″]