Home Cultura Livros: “O canto da Moreia” de Luísa Semedo: uma história africana em PortugalNuno Gomes Garcia·10 Outubro, 2019Cultura A viver em Paris há vinte anos, Luísa Semedo, depois de ter vencido, em 2017, o Prémio Literário e de Ilustração Eça de Queiroz com o conto “Céu de Carvão, Mar de Aço”, acaba de lançar em Portugal o seu primeiro romance, “O Canto da Moreia” (Editora Coolbooks), romance que será apresentado em Paris esta quinta-feira. O jovem Eugénio chega a Lisboa vindo de Cabo Verde e traz consigo o objetivo de aprender o “Conhecimento Universal”. A sua vida todavia ira seguir outro rumo marcado pela violência, o alcoolismo (a tal “Moreia”) e a solidão. Um livro intrépido escrito por uma ativista irrequieta e proativa que vê na “arte comprometida” uma forma de combater a invisibilidade a que é sujeita a minoria afrodescendente em Portugal, empurrada para bairros insalubres e periféricos. Uma invisibilidade potenciada pelo racismo – que a autora considera “estrutural” por ser perpetuado constante e reiteradamente pelas práticas institucionais e culturais do país – e pela pobreza que, embora partilhada por uma grande percentagem da população “branca”, se torna um peso maior para as populações “negras”, visto ser, tal como provam os estudos sociais, muito mais difícil, em Portugal e na Europa, a ascensão social de um “negro” do que a de um “branco”. É assim nesse contexto de ressaca pós-colonial e pós-imperial de um Portugal acabado de sair do 25 de Abril que Eugénio, logo na noite da sua chegada, vê o seu sonho abalado pelas palavras de Chico, o padre também cabo-verdiano que o acompanhou na viagem. Palavras que os remetem para a posição de submissão do africano em relação à supremacia da cultura e da religião europeias. Porém, Eugénio, homem instruído, não aceita esse ancestral papel de subordinação e tenta impor-se nesse Portugal novo e de feições democráticas, pois isto de uma Democracia tolerar, durante 45 anos, que cerca de 20% da sua população viva na pobreza, quase sempre a pobreza de quem trabalha, deixa “democraticamente” muito a desejar. Recorrendo a uma estrutura original – cada capítulo decorre num espaço diferente -, “O Canto da Moreia” vai retratando os progressos e os retrocessos da vida de Eugénio. De líder sindical numa fábrica de parafusos, homem bem casado com uma branca e pai de filhos, Eugénio, sentindo-se cada vez mais desenraizado e frustrado com os obstáculos intransponíveis que lhe vão aparecendo pela frente, não consegue dar à família a vida com que sempre sonhou e vai caindo numa espiral decadente que o levará ao alcoolismo e à vida de sem-abrigo. “O Eugénio foi viver para um bairro maioritariamente branco como era o bairro da Serafina quando eu aí cresci”, explica Luísa Semedo. “Aí, o racismo era omnipresente a par com a entreajuda e o sentido de família alargada. Nós, afrodescendentes, navegávamos sempre entre a intolerância e o amor. O Eugénio desde a sua chegada a Lisboa foi obrigado a viver de forma constante neste contexto ambivalente”. Então Eugénio, também vitimado pela sua própria sobranceria e arrogância, não fosse ele um personagem complexo, vê-se abandonado pela mulher e os três filhos, deixando-se cair na mais profunda das solidões. Este livro todavia não é apenas pobreza e sofrimento. A autora percorre a vida quotidiana dos seus personagens e nem só de lágrimas de faz a vida de um pobre. “Neste livro não existe uma visão miserabilista do bairro”, diz Luísa Semedo, “nada é ocultado, mas quis mostrar também a energia, o bom humor que emana de um território circunscrito onde todas e todos se conhecem”. Este primeiro romance de Luísa Semedo é uma das (ainda) poucas boas obras literárias escritas por portugueses afrodescendentes a retratarem essa viagem física e psicológica de África para Portugal. Um filão que, espera-se, terá ainda muito para dar à literatura lusófona. ____________ Apresentação do romance “O canto da Moreia” de Luísa Semedo terá lugar na quinta-feira, dia 10 de outubro, às 19h00, na Librairie Portugaise et Brésilienne, em Paris. A apresentação estará a cargo do tradutor Dominique Stoenesco e do escritor Nuno Gomes Garcia. Librairie Portugaise & Brésilienne 19/21 rue des Fossés Saint-Jacques 75005 Paris