Nuno Gomes Garcia conversa com Susana Moreira Marques: “O final de vida também é um momento de vida”

“Maintenant et à l’heure de notre mort” é a obra de estreia de Susana Moreira Marques. Publicado em Portugal, em 2012, com o título “Agora e na hora da nossa morte”, este livro é uma mistura entre ficção e jornalismo, um género a que muitos chamam romance de não-ficção.

Susana Moreira Marques partiu para o planalto mirandês em junho de 2011 para acompanhar um projeto-piloto de cuidados paliativos ao domicílio – financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian – com o objetivo de fazer uma reportagem sobre o que pensam as pessoas às portas da morte. A essa viagem seguiram-se mais duas até outubro desse ano, permitindo à autora mergulhar naquele fim de mundo português onde, para quem lida com a escala portuguesa, as distâncias parecem enormes e a paisagem inultrapassável.

Com fotografias de André Cepeda, este livro, um misto de reportagem, caderno de viagem e diário, alicerça-se nas entrevistas que a escritora, que também é jornalista, conduziu com o pudor devido e a humanidade obrigatória, fazendo-nos ver com clareza o oposto do mundo de forte pendor hedonista em que vivemos e forçando-nos a encarar uma realidade que, ao contrário das gerações que nos precederam, deixou de ser banal, uma realidade com a qual, no passado, se convivia todos os dias e que, hoje, passou a ser quase invisível. Essa realidade é a inevitabilidade da morte.

 

Susana, li algures numa entrevista que deu a propósito da tradução inglesa deste mesmo livro que alguém se referiu a ele como uma “reportagem filosófica”. E percebi que a Susana se identificou com esta definição. Porquê?

Sim, algumas pessoas também se referiram a ele como reportagem poética. Eu não estava à procura de encontrar um novo género quando comecei a escrever, mas estava à procura de encontrar um caminho, uma voz para poder falar de um assunto que é muito delicado e que mexe muito connosco a todos os níveis, seja ao nível do dia a dia, mais prático, seja ao nível de nos fazer pensar nas pessoas que amamos e nas pessoas que perdemos, e que também realmente nos faz pensar a um nível mais filosófico, questionando o que é que representa este bocadinho de tempo que passamos aqui e que sempre nos parece tão curto. Eu procurei juntar uma série de elementos que fui encontrando, que vinham das histórias que encontrei em Trás-os-Montes, mas que também vinham da paisagem, de todos aqueles pensamentos que me levavam a questionar ou a confrontar-me com pessoas que estavam no final da vida. Juntando isso tudo, a maneira que eu encontrei foi a de não fazer uma reportagem mais convencional, mas um texto que tivesse esse movimento da reportagem, de ir à descoberta, ouvir o que as pessoas têm para contar, mas tudo um pouco misturado com os meus pensamentos, com uma construção, até, de uma ideia do mundo com o qual eu tive de me deparar ao confrontar-me com esse assunto. Tive de repensar a minha própria perspetiva e sobre aquilo que a sociedade pensa sobre este tema.

 

E seria possível ter a experiência humana que teve durante a construção deste livro se o cenário fosse um grande centro urbano como o Porto, Lisboa ou Paris e não em aldeias remotas de Trás-os-Montes? A experiência seria a mesma?

Eu acredito que a experiência seria também muito intensa. Acho que não é possível partilharmos esse momento de vida – porque o final de vida também é um momento de vida – partilhar isso, dizia, observar isso em qualquer circunstância, em qualquer parte do mundo, até podia ser na Austrália, penso que seria sempre muito intenso. Agora, o facto de ser em Trás-os-Montes, no mundo rural, acrescentou muitas camadas ao trabalho. Havia aqui uma ligação muito forte entre o ciclo da vida humana e o ciclo da vida da terra. Eu acho que essa relação com a terra, uma relação mais forte ainda com a religião e com o que essa religião também representa na maneira como nós encaramos estes momentos mais difíceis da vida, tudo isso está mais presente num lugar como Trás-os-Montes do que está numa cidade como Lisboa, onde eu vivo, ou como o Porto, onde eu nasci. Cidades onde as pessoas acabam por estar mais desgarradas dessas tradições, de certas ideias e de uma maneira de encarar a morte que ainda vem do passado. Em Trás-os-Montes encontrei isso, além de uma paisagem absolutamente magnífica. Encontrei, como disse, esta ideia das distâncias que, para quem vive em países maiores como a França até poderá parecer ridícula. Como Trás-os-Montes é ligeiramente acidentado, as aldeias estão bastante distantes umas das outras. Não é um lugar com muita população, foi perdendo muita. Esta ideia, portanto, de que a gente pode viajar muito e não ver ninguém existe, e essa sensação de que há uma paisagem que está a perder um certo caráter de humanidade… tudo isso se tornou muito forte durante a experiência. Eu realmente ao observar as pessoas no fim da vida, muitas delas mais velhas, com 80 anos, percebi que o que elas tinham vivido, o mundo que elas tinham conhecido, no qual haviam passado quase um século, era um mundo que estava também a desaparecer. E essa sensação de que havia ali uma outra morte, um mundo que estava a ficar esquecido, mas também uma maneira de pensar sobre as coisas, de ver as coisas, maneiras que também estavam a ficar esquecidas. E um lugar, um lugar que é também uma cultura, tornou-se muito forte no livro. Havia então esta rima entre as pessoas que estavam a desaparecer e a sua própria paisagem que estava a modificar-se.

 

Susana, no passado, há 40, 50 anos, pelo menos todas as semanas, alguém conhecido morria. Um vizinho, um primo distante, alguém mais próximo eventualmente. E as pessoas conviviam com o cadáver em casa durante dias. Hoje, a morte parece algo longínqua e televisiva, até um pouco esterilizada. A maioria das pessoas já nem sequer morre em casa, mas sim nos hospitais, e o corpo é tratado por agências funerárias e não pela família como antigamente. Concorda se lhe disser que a nossa sociedade urbana do século XXI se desabituou da morte?

Concordo completamente. Acho que temos um pavor da morte. Nós desabituamo-nos a ver a morte como parte da vida. E a morte é parte da vida. Eu sou uma pessoa urbana e, como a maior parte das pessoas, tenho bastante medo da morte e nunca imaginei que fosse escrever um livro sobre este tema. E quando me propus fazê-lo, eu pensei que talvez fosse acordar uma série de medos em mim ou que aquilo se tornasse um trabalho mais depressivo, pesado. E, na verdade, não foi isso que aconteceu e até houve um movimento contrário porque nós tememos mais aquilo que desconhecemos, aquilo que está escondido. Eu acho que quanto mais a morte está arredada dos nossos olhares e das nossas vidas, mais a tememos. Pelo contrário, quando percebemos que ela faz parte da vida, vivemo-la com maior tranquilidade e tememo-la menos. E, para mim, foi um privilégio puder assistir ao trabalho desta equipa de cuidados paliativos está a fazer em Trás-os-Montes. Aquilo era um projeto-piloto, uma experiência, e a ideia era precisamente ajudar as pessoas a morrerem em casa delas e não nos hospitais, ainda por cima, no interior do país morrer nos hospitais significaria morrer bastante longe de sua casa. Essa experiência de perceber que as pessoas podiam realmente passar os últimos dias das suas vidas em casa delas, no lugar delas, onde elas ainda se sentem as pessoas que são. E isso faz toda a diferença. Não se pode falar de morte bonita. A morte não é bonita e provoca sempre muito sofrimento, mas eu assisti a algumas famílias viverem os últimos dias com bastante tranquilidade porque as pessoas estavam no seu lugar, a fazer as suas despedidas. E todo esse processo, o de tentar de dar o máximo de amor e carinho a essas pessoas que vivem os últimos dias faz muita diferença, não só para quem está a morrer, mas também para os seus familiares. E isso ajuda muito no processo de luto.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Fernando Rosas, autor de “L’art de durer, le fascisme au Portugal”

Quarta-feira, 19 de fevereiro, 9h30

Domingo, 23 de fevereiro, 14h25

 

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