Home Cultura Nuno Gomes Garcia conversa com Jacques Alexandre: “Eu escrevia, escrevia… escrevia sobre tudo e nada”Nuno Gomes Garcia·18 Março, 2019Cultura Jacques Alexandre nasceu em Lisboa e aos 16 anos descobriu Paris, acabando mais tarde por se naturalizar francês. Autodidata e curioso, viajou o equivalente a três voltas ao mundo, visitou 80 países, vivendo em cinco deles, sempre próximo do jornalismo e da edição. Deixou de falar português durante quase 30 anos e foi ao redescobrir a língua e a cultura maternas que nasceu a sua coletânea de poemas com título bilingue: “L’Abreuvoir du roy” ou “O chafariz d’el rei”. Um livro que o jornalista Raphaël Fresnais, no seu prefácio, diz poder ser lido como um diário íntimo, rico e denso. É nas derradeiras páginas deste livro que Jacques Alexandre tenta recuperar o tempo perdido, escrevendo um punhado de poemas em português. Jacques Alexandre porém não se fica pelos seus próprios livros. Ele é igualmente anfitrião de um programa sobre literatura no canal de televisão online france-art.tv. Nesse espaço, “Parenthèse”, assim se chama, o poeta já deu voz a mais de 70 autores, tornando-se assim um dos grandes divulgadores culturais do país. Jacques, fale-nos dessa sua redescoberta de Portugal e da língua portuguesa após tantos anos de afastamento. Isso é uma história… seriam precisos vários dias. Aqueles que já sabem alguma coisa sobre mim – mas não sabem tudo (risos)! – perguntam-me “quando é que vais escrever o livro da tua vida?” A minha vida daria um livro com muitas páginas. Isto foi uma história como acontecem muitas na Comunidade. Eu saí de Portugal ainda jovem. A minha mãe faleceu muito cedo. Bem, nos anos sessenta e picos, eu gostava muito de ouvir poemas na televisão. Havia então o grande Norberto Barroca, que é natural da Marinha Grande, e que fez teatro, encenou em vários países, África, Brasil, fez filmes. Ele apareceu na televisão a declamar o poema “If”, que significa “Se” ou “Si”, do Rudyard Kipling, um inglês indiano ou um indiano inglês, não sei como defini-lo, que foi Nobel da Literatura em 1907. E então eu ficava pasmado quando ouvia essas coisas. Eu andava naquela fase em que escrevia muitos poemas, a minha mãe estava muito doente. E eu escrevia, escrevia… escrevia sobre tudo e nada, aliás. E também fazia teatro amador no grupo António de Aguiar, um grupo muito conhecido que fez um sucesso tremendo no teatro Trindade em Lisboa. Eu andava nessa onda e em 1964 abalei e vim para casa de um tio em França. Então o afastamento da língua portuguesa começou aí? Sim, o afastamento começou aí. Quando vim para França, fiz mil coisas. Claro, o que fazem todos os jovens, eu tinha 15 ou 16 anos. Eu até fui obrigado a falsificar a data de nascimento para ficar mais velho, depois de dizer que tinha perdido os documentos, porque era demasiado novo para poder trabalhar e ir para a Suíça. Pouco depois de sair de Portugal, a minha mãe faleceu, a minha irmã casou com um médico, ficou com nome de mulher casada, e o meu irmão, na marinha, foi para o Brasil. E perdeu o contacto com esses irmãos? Perdi o contacto com toda a família. Os mais velhotes morreram, os primos foram para ali e para acolá, muitos para o estrangeiro. Então só depois quando o meu pai faleceu é que comecei a procurar a família, a fazer buscas mais sérias. Em 1992, eu pedi a um fulano que foi a Portugal para me trazer uma certidão de óbito do meu pai. Aí, eu comecei a procurar nas Páginas Amarelas se havia alguém assim com nomes parecidos e aquilo demorou vários meses. E, enfim, em outubro de 1992, consegui aceder a alguns documentos com dados da família, soube inclusive o nome de casada da minha irmã. E um dia, ainda em outubro de 1992, telefonei para lá e passei duas horas ao telefone com a minha irmã. Claro, a recuperar o tempo perdido. Vamos falar um pouco do livro. O próprio título desta coletânea tem em si já qualquer coisa de misterioso. De onde vem ele? L’Abreuvoir du roy ou o Chafariz d’el Rei é um bairro de Évora. Era aí que os cavaleiros do Geraldo Sem Pavor vinham dar de beber aos cavalos naquela época da reconquista de Évora. O chafariz ainda está lá, ainda existe. E nós morávamos mesmo por trás do chafariz. O título é uma alusão à minha mocidade. E Jacques, qual é o poema mais antigo deste livro? São todos os que dizem respeito ao Chafariz d’el Rei. Tudo começou aí. E foi também no Chafariz d’el rei que eu ouvi o Norberto Barroca a declamar o tal “if”: “se és capaz de manter tua calma, quando, toda a gente ao redor já a perdeu e te culpa”. Para um miúdo de 13 ou 14 anos aquilo foi um choque tremendo. Jacques, fale-nos também um pouco dessas suas viagens. Qual foi a mais memorável? Eu vou dizer uma coisa que se calhar vai até admirar algumas pessoas. Não foi nem o Brasil nem o Canadá, nenhum desses países onde o pessoal gosta muito de ir. Os dois países de que mais gostei, de que mais gosto, são o Sri Lanka, ou o Ceilão, e um outro país que é aqui muito pertinho, a Croácia. Ao dizer a Croácia, também posso dizer a Sérvia, o Montenegro… Viveu aí ainda no tempo da Jugoslávia ou depois? Já depois. E estive lá antes e depois da guerra. Eu viajei muito pela Europa de leste, a Bulgária, a Estónia… eu conheço aqueles países tão bem ou melhor do que Portugal. Só há uma capital europeia que ainda não conheci que é Vilnius. Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris Próximo convidado: Eunice DM autora de “Le royaume de Messidor” Quarta-feira, 20 de março, 9h30 Domingo, 24 de março, 14h25